Comeremos no cocho das ideias fascistas?

Comeremos no cocho das ideias fascistas?

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Onde se queimam livros,
acaba-se queimando pessoas.
Heinrich Heine1

Esta foi uma crônica que escrevi no início do ano e acabei arquivando, por achá-la com um tom alarmista. Quanta ingenuidade. Relendo-a, percebi o quanto avançamos em direção à barbárie em tão pouco tempo.

Por volta de fevereiro, estava passando os olhos pelas notícias no celular, quando uma delas saltou da tela e deu um tapa na minha cara. Na minha bochecha, deixou impressa sua manchete. A Secretaria de Educação de Rondônia havia determinado o recolhimento de 43 livros das bibliotecas escolares por considerar seu conteúdo “inadequado” para jovens e adolescentes.

Com esperança (pequena) de a chamada não traduzir o que efetivamente ocorreu, abri o link. E percebi que a coisa era pior do que eu imaginara. O comando de recolhimento não só foi expedido, como na lista constavam obras como Macunaíma: o herói sem nenhum caráter”, de Mário de Andrade, O Castelo, de Franz Kafka, Contos de terror de mistério de Edgar Allan Poe, e Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis.

Não estamos no século XVI, quando os espanhóis, depois de conquistarem os Maias, queimaram seus manuscritos sagrados. Eles sequer entendiam o que estava nos documentos, apenas presumiram ser inspirados pelo demônio.

Não estamos em 1861, quando centenas de livros com inspiração espírita foram queimados na esplanada de Barcelona.

Não estamos em 1933, quando muitas dezenas de milhares de nazistas acompanharam alegremente, ao som de discursos e música de bandas, a grande queima de livros que se estendeu por toda a Alemanha. Entre estes autores, também estava Franz Kafka, um dos proscritos pela Secretaria de Educação de Rondônia.

Livros são símbolo de conhecimento. Materializam a tentativa de transmissão da mensagem do autor para o leitor. Estão gravados no nosso inconsciente coletivo como forma de divulgação da cultura.
Banir ou queimar livros é uma tentativa de controlar a forma como se pensa, por inanição mental seletiva. Priva-se o indivíduo da alimentação com determinado tipo de ideia. Ao mesmo tempo, coloca no cocho cultural da sociedade apenas uma ração processada pela ideologia de quem controla o rebanho.

Relendo o texto até aqui, parece-me que ele contém apenas obviedades. Textos óbvios são, em regra, desnecessários. O atual momento do nosso país, no entanto, exige que falemos o óbvio. As tentativas de censura proliferam, como na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, no ano de 2019, quando o prefeito da cidade tentou recolher uma graphic novel que, na sua ótica, era inadequada.
Calar, nesse momento, é omitir-se. É também, em última análise, consentir e apoiar a esse movimento de idiotização.

Atacar livros é um ato impregnado de significação, como Jon Henley deixa claro no seu excelente artigo “Book-burning: fanning the flames of hatred”2. Não por acaso, o grande desafio de todas as ditaduras e uma das peças centrais de qualquer distopia que se preze, como Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, e 1984, de George Orwell, é o controle da informação.

Seguindo a nossa história, pela força da crítica pública, a “Secretaria de Educação” (o nome, aqui, é carregado de grossa ironia) primeiro negou que tivesse determinado o recolhimento dos livros. Depois, confrontada com provas, voltou atrás e tornou o seu comando sem efeito.

O assunto caiu no esquecimento em poucos dias, pois vivemos tempos de absurdos diários, quando não “horários”. Mas tenham certeza de que um passo para longe do regime democrático foi dado. Não há mais vergonha em se defender o banimento de livros .

Se continuarmos a deixar esse caminho ser trilhado, existirá um momento no qual estaremos tão distantes da democracia, que sequer uma crítica como esta poderemos fazer.

E restará apenas comer no cocho das ideias que nos servirem.

1 “Tragödien: nebst einem lyrischen Intermezzo”.
2 https://www.theguardian.com/books/2010/sep/10/book-burning-quran-history-nazis.

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