“E daí?”

“E daí?”

Download desta Crônica em PDF

“E daí?” parece uma pergunta simples. Dessas que se solta ao ar em qualquer conversa amena, naquele tempo em que frequentávamos bares com os amigos. Ela sequer é, em verdade, uma pergunta, pois não exige resposta. Ela já traz a sua resposta embutida.

O problema é que o “E daí?” condensa, de forma sutil, todo um mundo embaixo dele. Vemos apenas a cabeça do alfinete, que está cravado nas costas de um elefante. Neste mundo paquiderme, estão as nossas regras éticas. Nele também circula, orgulhosa de si, toda a nossa doutrina social de economia-política.

Mas por que a frase banal tem tanta importância?

Porque ao dizer “E daí?” você está traçando um risco no chão imaginário da conversa. Deixa claro o que lhe importa e o que não lhe importa. O “E daí?” é a barragem do desprezo.

Mas há pessoas passando fome. E daí? Eu pago os meus impostos. Existem famílias amontoadas em barracos. E daí? Nem todos têm a mesma sorte. Há filas de pessoas asfixiando à espera de um respirados no SUS. E daí? Eu mereço a reserva de um respirador pelo meu plano de saúde.

E daí? Entende agora?

Foi o “E daí?” que permitiu a construção de uma sociedade grotescamente desigual e que semeia o solo para que ela continue cada vez pior.

Você ainda está em dúvida? Vamos a exemplos práticos.

Nos primeiros dias de pandemia e pandemônio, seriam hilárias, se não fossem trágicas, as justificativas dos integrantes das carreatas pelo fim do isolamento social. Óbvio que seus integrantes não poderiam ser sinceros naquilo que defendiam – o lucro −, mesmo que isso expusesse milhões de trabalhadores e suas famílias ao risco de morte. Tinham que inventar uma capa bonita, para embrulhar o seu feio egoísmo. O que fizeram? Justificaram estar preocupados com os trabalhadores. Disseram que desfilavam buzinando seus carros importados na frente de hospitais, pelo pessoal de baixa, pelos pobres e pelos trabalhadores informais que ficariam sem renda.

Vou ser conservador. Metade daquelas pessoas pularia por cima de um mendigo sem olhá-lo e colocaria a culpa nele se tropeçasse. São essas as pessoas que fizeram do “E daí?” uma arte. E que agora têm que fingir se importar. Mas a tentativa é patética. O mais rápido exame de olhar, revela que o “E daí?” está gravado naquela mente. Antes, utilizavam o pobre como escada. Agora, o utilizam como escudo.

Você deve estar se excluindo desse grupo e justificando para si mesmo que não usa o “E daí?’”. Usa sim, na sua forma muda mais comum, a indiferença. Quando aquela criança de dez anos se esgueira no restaurante, com um irmão de seis ao seu lado, e tenta lhe vender um jogo de panos de prato por dez reais, você lhe sorri, maneia a cabeça e retoma a conversa. E daí?

O “E daí?” é cultural, mas requer treinamento. Em uma sociedade desigual como a nossa, é preciso muito esforço em indiferença para podermos nos adequar e ter uma vida normal. Mesmo assim, nosso “E daí?” às vezes vacila. Passamos a nos importar ou emocionar com alguma coisa. Esse sentimento geralmente nos pega desprevenido. E é difícil lidar com ele. O que fazemos? O de sempre: deixar passar. Voltamos nossa atenção para algo que queremos comprar e focalizamos a nossa própria dor de umbigo. E daí? Cada um com os seus problemas, não precisamos resolver o dos outros.

Bem, vivemos o mundo do “E daí?”. Então, para alguém dizer isso e chamar a nossa atenção, deve ser um fato extraordinário. Algo para além do inusitado. Algo incrível. Alguém extrapolou até mesmo as barreiras da falta de senso.

Quando isso poderia ocorrer?

Difícil imaginar. Como estou me sentido criativo, arrisco uma hipótese.

Alguém dizer “E daí?” de forma raivosa e com risos ao fundo, quando confrontado com um número de milhares de mortes, algumas (muitas) das quais poderia ter evitado, se agisse de forma diferente e minimamente responsável.

Eu sei, o exemplo foi forçado.

E daí?

Comentários