Velório

Velório

Download deste Conto em PDF

O velório seguia à perfeição o seu roteiro não escrito. Pequenos grupos de pessoas conversavam em voz baixa e mantinham semblantes entristecidos. Algumas balançavam a cabeça pesarosamente. Aqui e ali, ouvia-se um início de choro ou uma fungada. O esperado clima de respeito e consternação era evidente.

Ele estava encostado em uma parede, propositalmente oculto atrás de um grupo de amigos que trocava recordações. Olhava para baixo, perdido em suas reflexões, quando uma voz lhe trouxe de volta de seu isolamento.

— Uma grande perda.

Olhou para o lado e não reconheceu o homem que estava ali postado. Segurava as mãos na frente do corpo e olhava para cima. Ignorou-o. O homem insistiu.

— Foi um baque. Coitada da família. Ninguém esperava.

Forçou-se a encarar aquele homem, que vestia um paletó desgastado, de lã grossa e quente demais para aquele início de verão, mesmo com o ar-condicionado tentando os fazer crer que estavam na Patagônia. O que mais lhe chamou mais atenção, contudo, foi o conjunto de quatro tampas de canetas, de cores diversas, que apareciam sobre o bolso da camisa, à altura do peito. Quem leva quatro canetas para um velório no domingo de tarde? Fez um apenas um sinal de cabeça, que tanto poderia significar sim quanto não, torcendo para que ele fosse embora. O homem deixou transcorrerem alguns segundos de silêncio e voltou à carga.

— Morreu muito jovem. É uma pena, não?

Percebeu que somente o seu silêncio não seria suficiente para afastar o intruso. Provavelmente, uma alma perdida, que não conhecia ninguém ali e acabou grudando nele como um encosto, em busca de companhia. Tudo o que ele não queria.

— Jovem? Ele tinha setenta e sete anos.

— Sim! Hoje em dia isso é jovem — o homem disse animado por ter estabelecido um diálogo.

— Com setenta e sete seu pau já percorreu por todas as fases possíveis. Não serve mais para o sexo. Não segura mais o mijo. A única coisa que ainda pode fazer bem é te implodir com um câncer. Acredite em mim, tenho setenta e seis. Não me sinto jovem desde os cinquenta.

O rosto do homem contorceu-se em uma expressão de choque. Sua avaliação estava correta. O homem provavelmente era um carola. Talvez, um contador. Ou, pior, um contador carola. De qualquer forma, alguém contido, que não estava acostumado a uma conversa franca, a falar sexo e a ouvir palavrões, principalmente um público. Nunca, sob hipótese alguma, em um velório. Mas o homem, ainda embaraçado, tentou salvar a conversa, puxando outra frase pronta para aquelas ocasiões.

— Bem, o que interessa é que está lá em cima. — Apontou o dedo para o teto e esboçou um pequeno sorriso.

— O Jorge era ateu.

— Não! Ele era evangélico! E praticante. Ia seguido no culto. Nos encontrávamos lá.

Deixou escapar um pequeno sorriso.

— Ir no culto não tem nada a ver com ter fé. A começar pela maioria dos pastores.

O homem ficou visivelmente ofendido. Sentindo prazer em incomodar quem estava lhe incomodando. Prosseguiu.

— Isso eu e o José tínhamos em comum. Nenhum dos dois acreditava nesses contos de fada macabros que vocês contam nos seus cultos. Ele apenas mantinha uma aparência de crente, pois era bom para os negócios.

Aproximou-se do homem, para que ele lhe ouvisse bem.

— Agora, uma coisa eu sei: se há alguma verdade nisso que vocês acreditam, o José estaria lá e não lá. — Apontou primeiro o dedo da mão direita para o chão e, depois, o da esquerda para cima, mexendo-o levemente em negativa.

O tom de voz do homem das canetas engrossou.

— Você conhecia o José da onde?

— Éramos amigos de infância. Uma época eu achava que ele era o meu melhor amigo.

Ainda brabo, mas agora em dúvida, o homem prosseguiu.

— Não concordo com essa sua brincadeira. O José era uma excelente pessoa. Jesus vai recebê-lo de braços abertos.

Ele olhou bem nos olhos do homem e percebeu o quanto precisava dizer aquilo. Sentiu o alívio de dizer aquilo antes mesmo de abrir a boca.

— O José era um filho da puta.

O homem deu um passo para trás, parecendo ter sido empurrado.

— Ninguém que está chorando aqui vai sentir falta dele. — Apontou para o outro lado do salão. — O filho estava louco para que o pai morresse, para assumir o lugar dele na empresa. A mulher o corneia desde a lua de mel. Nem o cachorro da casa vai ficar triste quando ele não aparecer hoje.

— Isso, isso, isso é um absurdo! — o homem gritou, chamando à atenção do quem estava em volta. Aquilo era tudo o que não queria. O filho de José, que passava do outro lado do salão naquele momento, viu a cena e veio imediatamente na direção deles. Quando chegou, usou uma voz baixa e contida, que não disfarçava a sua raiva, mas tentava evitar um escândalo.

— Eu disse para você não aparecer aqui!

— Pois é. Eu decidi vir mesmo assim. Queria ver o teu pai ali deitado. Pode considerar como isso um ritual de passagem.

— Vá embora. Agora! — A voz aumentou de volume.

Um círculo de pessoas tentando entender o que estava ocorrendo começou a se formar ao redor deles. Não era assim que tinha imaginado as coisas. Agora que aquilo tinha começado, no entanto, ele não conseguiu mais se conter.

— A morte não torna ninguém melhor do que foi, Miguel. Tudo isso aqui — fez um gesto amplo com a mãos — veio do que ele roubou de mim. Do que ele desviou da nossa sociedade. Eu passei fome para pagar todo mundo. Um ano depois, ele estava de volta no negócio, com o dinheiro que me roubou. E me roubou com a mesma cara de pau serena que está ali. — Enquanto gritava aquilo, ouviam-se pequenas expressões de surpresa e consternação ao redor. Todos no velório agora tentavam se aproximar. — O mínimo que ele me deve é o direito de vê-lo morto.

Miguel não se conteve. Avançou e deu-lhe um soco. Foi um golpe desajeitado, amplo demais, de quem está cego de raiva e não costuma brigar. Ele teve o reflexo de mover o rosto um pouco para o lado. O murro atingiu-o na bochecha. Sentiu algo se quebrar dentro da sua boca e um apagão. Instantes depois, sua cabeça bateu no chão e acordou. Gritos irromperam ao seu redor. Viu Miguel ser contido pelo homem das canetas e por outro, que não conhecia. Ao lado deles, uma mulher loira, com um vestido preto, olhos vermelhos e expressão perplexa, apareceu.

— Renan! O que é isso? O que você está fazendo aqui?

Ele não se levantou. Apenas se apoiou em um dos cotovelos no chão e, com a manga do paletó, limpou o sangue que escorria da boca. Cuspiu um pedaço de dente para o lado. Sua língua examinou os fragmentos afiados que permaneciam na sua boca. Depois, levantou os olhos e encarou a mulher.

— Você continua linda, Marta. Aliás, sempre te achei um desperdício de beleza.

Miguel tentou avançar para cima dele novamente, mas foi contido. Ouviu alguém dizer que ele era um velho. E tinha toda razão. Poucas vezes ele esse sentira tão velho quanto agora.

— Vá embora, Renan! Olhe o que você está causando. Tenha um pouco de decência. Você foi amigo de José!

— Sim. Fui. Esse foi o meu erro. O maior deles. Eu fui amigo de José e José nunca foi amigo de ninguém. — Do chão, apontou para os que o cercavam. — Vocês estão todos aí, chocados, pranteando a lembrança desse canalha. No fundo, todo mundo aqui sabe quem era o José.

— Cale a boca, Renan. Vá embora! — Marta abraçou o filho, que, em mais um acesso de raiva, tentava se livrar dos braços que o seguravam.

— Eu vou. Eu vou. — Pôs-se de pé, com dificuldade. Ninguém lhe ajudou. O rosto pulsava junto com as batidas do seu coração, que estavam aceleradas. Ele não se importava com a dor. Ela combinava com o momento. Ajeitou-se lentamente, da melhor forma que pôde. O terno cinza tinha uma mancha de sangue escura na manga direita. A sala foi reposta ao silêncio a que estava acostumada, enquanto ele fazia aqueles pequenos gestos. Por fim, disse em voz baixa.

— Eu tenho que confessar a vocês. José era um filho da puta, mas eu fui um covarde. Esperei minha vida toda para dar o troco a ele. E, na hora decisiva, não consegui. Não consegui.
— Ele falava, agora, para si mesmo. A raiva escoou da sua voz, sendo substituída pela tristeza. Olhava para os próprios sapatos.

— Ele acabou com a minha vida, mas eu não consegui acabar com a dele. Não tive coragem. Faltou-me o sangue frio. Faltaram-me colhões. — Levantou a cabeça e encarou Marta, que ainda estava abraçada no filho. Ela balançava nervosamente a cabeça em negativa.

— O que estou fazendo aqui? — Sua voz aumentou. Rodou os braços, como se estivesse em um palco, dirigindo-se ao público. — Todos estão curiosos querendo saber quem é esse velho louco que veio acabar com a essa peça em que vocês fingem sofrimento, não é? Eu vou dizer. Eu vou dizer. — Deu um passo para trás. — Meu plano era falar isso só para José. Eu sei que ele está morto. Ainda não estou senil, o que é uma pena. Eu lembro de tudo. Ele está morto, mas eu precisava dizer isso na presença dele. Nem que fosse somente para o corpo inerte, que odiei por tanto tempo. Eu só queria chegar perto do caixão e sussurrar para ele.
Deu mais um passo para trás, em direção à saída. As pessoas abriram uma passagem em direção às escadas.

— Vocês não têm ideia de quanta vezes eu pensei em como lhe contar isso. De quantas formas. Em quantos locais. Quantas vezes imaginei o seu rosto. Quantas vezes saboreei a sua expressão de dúvida. E, depois, de choque, quando percebesse a verdade. — Ele riu e se afastou um pouco mais, até o limiar do primeiro degrau. — Nenhuma delas, confesso, ocorria em um velório. — Riu de novo. Era uma risada sem graça. — Mas eu fui covarde e José fugiu de mim. Agora definitivamente.

Seu olhar se perdeu em algum ponto da parede. Marta continuava balançando a cabeça, apreensiva. Miguel havia recuperado um pouco da razão e apenas olhava aquele velho patético e ensandecido. Não conseguiu deixar de sentir um pouco de pena. Renan o encarou.

— Era só isso que eu queria. — Virou de costas e começou a descer as escadas lentamente. No segundo ou terceiro degrau, gritou por sobre os ombros. — Dizer a ele que você é meu filho.

Comentários