Egoísmo

Egoísmo

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Cenas de um relacionamento – I

— Não, não sou fiel!

Ela sentiu a lágrima quente partir, dividindo o seu rosto em um caminho lento e ardido na direção ao canto da boca, onde se aninhou salgada. Virou-se. Não queria chorar. Não, queria chorar. Não queria que ele a visse chorando. Não sabia se odiava mais a ele ou a si mesma, por aquela confissão de fraqueza.

O olhar de cólera dele voltou ao tampo da mesa, onde o celular estava jogado de forma desajeitada. Antônio havia recuado como um animal perseguido pelas acusações dela, até dar de costas contra a parede da verdade. A verdade que brilhava em forma de um beijo naquela tela. Acuado, reagia com raiva.

  Não sou. Nunca fui. Não vou ser seu. É isso que tu queria ouvir? É a verdade? Então essa é a tua verdade.

Ele pegou o telefone com raiva e jogou-o deslizando pelo tampo a mesa em direção a ela. Ainda amortecida pela dor que não queria demonstrar, não teve reflexo de segurar o aparelho. Ele desabou pela borda e parou em um som agudo de vidro quebrado. Abaixou para apanhá-lo. Uma rachadura inclinada cruzava a tela por volta do seu centro. Apertou um botão e viu que o aparelho ainda funcionava. Identificou-se com ele. Quebrado, mas estranhamente funcionando. E, pela primeira vez desde que recebera as fotos de um número que não desconhecia, sentiu uma pontada de raiva.

— Vocês querem tudo para vocês. A própria alma da pessoa. São dementadores de sentimentos! Querem construir essas pequenas prisões ao redor das outras pessoas, de onde elas podem sair apenas para servir ao que vocês chamam de amor! — Ele se levantou num impulso. A adrenalina o deixava eloquente. — Isso não é amor. É egoísmo.

Aquela última frase. Se ele a tivesse sacudido pelos ombros, não teria tanto efeito. Olhou para aquele homem parado em pé em posição desafiadora, de uma maneira nova. Um filtro havia sido retirado e partira-se no processo. Nada mais a impedia de ver as emanações de sombra dele. Haviam se conhecido há pouco mais de um ano e ele a mantivera intoxicada de sensações desde então. O frio que esvaziava o seu peito era a antecipação da síndrome de abstinência. Passou a mais discretamente que pôde a mão na base do olho esquerdo, onde outra lágrima ameaçava despencar. E respondeu em uma voz baixa e controlada, que se estruturava sobre um concreto de raiva.

— Egoísta? Sim. Acho que fui egoísta. De certa forma, foi bom ter acontecido isso. — Ela olhou para o celular novamente, ganhando tempo para pensar. — Eu queria ter te falado há algum tempo. Tinha medo da tua reação. Assim como tu tinha medo da minha. Achava que te conhecia. — Cruzou os braços e se recompôs, sentando reta na cadeira. — Mas agora eu sei como tu pensa sobre isso. Então, tudo bem. Eu dou de vez em quando para o Marcelo.

— Como?

— O Marcelo, meu colega no escritório. A gente fode. Desde bem antes de eu te conhecer. Tu sabe como eu fico quando estou com tesão. No meio da tarde, às vezes, damos uma escapada. Ele é casado. Te lembra da mulher dele, a Anita? Ele disse que ela é muito contida. Não faz tudo que eu… Que nós fazemos. Mas é coisa rápida. Na maioria das vezes, resolvemos ali mesmo, no banheiro da sala do Moacir.

Ele recuou um passo, como se tivesse sido empurrado para trás.

— Com o Márcio? Tu me traía com o Márcio. Que merda é essa!? Isso é mentira!

— Mentira? Antônio, por que eu mentiria? Essa não é a hora da verdade? Está tudo certo. Eu fico bem mais aliviada. Posso continuar dando para ele e tu pode ficar comendo de vez em quando com essa, qual é o nome dela mesmo? Tá tudo bem.

— Não! Eu… Nós… — Ele se engasgou, procurando alguma justificativa para a negativa. Os efeitos da adrenalina, no entanto, não eram tão poderosos. Ela se inclinou para a frente.

— Bem. Entendi. Já que essa questão do egoísmo ficou clara, acho que prefiro continuar me encontrando com o Márcio. É mais… Sincero, sabe?

Foi a vez dela se levantar e sair. Carregava aquele enorme vazio e lágrimas que agora jorravam sem qualquer pudor. Apesar disso, levava um pequeno sorriso no canto da boca.

Ele permaneceu algum tempo em pé, imóvel. Sentou-se com um autômato e ficou olhando para o nada por alguns instantes, tentando processar tudo o que havia ocorrido. Acabou por enfiar na palma das mãos, que receberam a umidade da primeira lágrima.

Enquanto ela caminhava para a casa, digitou desajeitadamente na tela rachada o lembrete para não esquecer de pedir ao Márcio confirmar aquela história absurda.

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