O Poder da Sinceridade

O Poder da Sinceridade

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O homem se aproximou com uma cópia do jornal “Boca de Rua” na mão e um sorriso de centenas de dentes na boca.

— Mas que casal simpático!

Levei um leve susto, pois estava distraído, conversando com minha mulher, enquanto aguardávamos na rua a entrega do carro após o jantar.
Era um homem grande e vinha direto na nossa direção. O departamento cerebral de perigo foi acionado, como o robô de Perdidos no Espaço, ascendendo uma luz vermelha em algum canto da consciência.
Não se tratava propriamente de um mendigo. Estava, inclusive, relativamente bem-vestido, na mais fria noite de início de primavera da qual me recordo. O jornal em sua mão, contudo, denunciava a condição de pedinte. O “Boca de Rua” era distribuído em sinaleiras, servindo como um elemento para facilitar a aproximação com o potencial doador.

— Calma chefia. — Ele mostrou a mão espalmada em sinal de paz e, mesmo eu pensando que não fosse possível, estendeu ainda mais o seu sorriso.

Catalogado o perigo, que era baixo, preparei minha postura padrão para esses momentos. Olhar direto, voz calma e amigável e um “não” que, já sabia, seria reiterado diversas vezes antes de ele se dar por vencido. Parou próximo a mim e me examinou por um segundo, com um olhar inteligente. Falou, então, por entre aquele sorriso.

— Patrão, eu podia te mentir, mas não vou. O senhor pode me dar algum dinheiro para a cachaça?

Eu não estava preparado para aquilo.
A rua em questão ficava em um bairro de classe alta. Estávamos cercados de glamour e de bares onde pessoas bem-vestidas bebiam, comiam e se divertiam com aquele olhar blasé. Aquele ar de “acho que isso aqui está legal, mas estou tão acostumado a estar legal que tudo parece comum”.
Na hora, a área repressora do cérebro jogou em cima de mim uma enxurrada de teses politicamente corretas. Algumas, reconheço, efetivamente corretas. Ele possivelmente era um alcóolatra. Se eu lhe desse dinheiro, estaria contribuindo para o vício. Provavelmente, ele não tinha sequer comida para aquela noite. Sim, sim, eu sabia de tudo isso.
Sabia também que ele não era só isso. Era simpático, educado, parecia saudável e, por motivos que desconheço e que não eram da minha conta, estava ali, sem nenhum dinheiro, querendo pegar para si um pouco daquela felicidade que sentia pairar no ar.
Que direito tinha eu de lhe negar isso?
Aí, o departamento de ironia do meu cérebro puxou minha manga e fez ver que, se ele tivesse me pedido dinheiro para comida, em tese, algo mais importante, eu teria negado. E negado de novo, até ele ir embora.
Por quê?
Porque ele não teria sido sincero.
Simpatia, educação, necessidade e sinceridade. Como resistir a todas elas somadas?
Abri a carteira e lhe entreguei uma nota, dizendo que o primeiro brinde teria que ser para mim.

— Mas é cachaça, doutor!

Foi a vez de a minha mulher intervir.

— Bebemos disso também.

E você?

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