O amigo que dei de presente

O amigo que dei de presente

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O dia oito de dezembro foi semana passada. Um dia significativo na história. É dia do nascimento de artistas geniais (e loucos), como Camille Claudel e Jim Morrison, assim como da morte de outros, como John Lennon e Antônio Carlos Jobim. Foi o dia da criação do futebol como o conhecemos hoje, pela The Football Association. Também nesse dia, os Estados Unidos entraram na Segunda Guerra Mundial, mudando o rumo da história (hoje poderíamos estar falando alemão ou russo, ao invés de inglês).

É ainda a data de celebração da Justiça, entre outras coisas. Na verdade, nada disso importa muito. Milhares de coisas aconteceram em cada um dos dias do ano. Basta uma simples pesquisa para justificar qualquer dia como sendo especial por esse ou aquele motivo

O importante é que, no oito de dezembro, comemoramos oficialmente a amizade do meu mais antigo grupo de amigos — os “Sentimentais”. E é sobre uma história deles este texto.

Lá em meados de 1988, um de nós estava apaixonado (estávamos sempre, não é por acaso que nosso grupo se chama Sentimentais). Esse nosso amigo tem, entre nós, apelido de pássaro. Vou proteger a sua identidade, chamando-lhe de, deixe-me ver, Gavião.

Pois bem, Gavião estava apaixonado, mas era tímido. Tinha cara de tímido, jeito de tímido e a iniciativa de tímido. Vou chamá-la de, hum… Arara, para continuarmos na classe das aves. E a Arara também era muito tímida.

O Gavião e a Arara já tinham demonstrado aquele interesse mútuo. Olhares longos, sorrisos fora de hora e uma inquietação quando estavam juntos. Todos esperavam, apenas, que a atração de consumasse. Mas ela não se consumava. Os dois tinham a iniciativa de pedras apaixonadas. Só a força do vento ou mar juntaria as duas. Ou os Sentimentais.

Resolvemos acabar com aquele impasse.

A Arara estava de aniversário e marcou uma janta, com toda a turma de aula dela, em uma pizzaria (isso parece saído do pesadelo de um dono de rodízio barato: dezenas de adolescentes famintos entrando pela porta). Nada mais apropriado, pensamos, do que dar o próprio Gavião de presente para ela.

Pegamos um lençol, um monte de fitas de presente que a minha mãe guardava em casa e fomos para a pizzaria. Saímos do táxi e, ainda na rua, jogamos o lençol por cima dele, enrolando tudo com fitas. Uma das gurias que estava conosco fez um grande laço vermelho, que prendemos na altura do pescoço. Para finalizar, colocamos um cartaz no peito, dizendo “para você usar com amor”, e entramos na pizzaria.

O salão estava lotado. Era a noite de sexta-feira. Havia o barulho infernal de dezenas de famílias comendo como se o apocalipse zumbi fosse no dia seguinte. O Gavião não podia dar grandes passos, pois tínhamos apertado demais as fitas. Ele também não conseguia ver para onde ia, por causa do lençol. Assim, caminhava como um fantasma pinguim cego, sendo conduzido por nós para não cair por sobre as mesas.

Demorou alguns segundos para pessoas perceberem o grupo que entrava. Quando perceberam, fez-se um silêncio de estádio de futebol quando o time visitante marca um gol. Lembro de um homem, na primeira mesa, que parou o garfo do ar, com a boca aberta, e ficou imóvel, sem entender nada do que estava se passando. O mesmo olhar de “o-que-está-acontecendo-aqui” era espelhado por todas as outras faces.

A mesa da Arara ficava em uma sala ao lado. Quando contornamos a parede e a turma dela nos viu, uns dois não morreram engasgados de rir por obra do acaso. A Arara, que era branca, ficou escarlate. Achei que fosse desmaiar de tanta vergonha. Conduzimos o pinguim fantasma em direção a ela, que não sabia o que fazer.

Nesse momento, as outras mesas saíram juntas do silêncio, começando um grande coro de “abre, abre, abre”. Tremendo, ela tentou tirar a maçaroca de fitas que havíamos enrolado. Não conseguiu e tivemos que ajudar. Por fim, o lençol foi embora, revelando um Gavião suado de calor e de vergonha. Os dois se encararam, sem saber exatamente o que fazer. Ah, as pedras…

Novamente o restaurante se uniu em coro.
“Beija, beija, beija.”
E eles se beijaram.
E foram felizes. Por uns dois meses.
Mas aí é outra história.

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