Comprar como filosofia de vida: o telemarketing e a proctologia

Comprar como filosofia de vida: o telemarketing e a proctologia

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A sua vida gira em torno de comprar. Gostamos de dizer que vivemos em sociedade para conviver com outras pessoas. Não. Vivemos em cidades, pois assim fica mais fácil comprar e vender. Simples assim.

A compra está tão arraigada como centro da nossa filosofia de vida, que a discussão durante a pandemia é entre preservar a vida das pessoas ou permitir que elas possam comprar. Vida ou compra. Eu imagino o administrador fazendo aquele cálculo mensal. “Mas se eu flexibilizar aqui, vão morrer o quê? Talvez umas dez pessoas a mais. Deixa abrir!”.

Eu adoro comprar. Fui ensinado assim desde criança e aprendi bem. Aquela satisfação momentânea, já mirando na próxima coisa inútil. De teco em teco, ou melhor, de comprinha em comprinha. Como muitos outros, descobri que era possível manter o vício em casa durante a pandemia. Eles entregam o produto na sua porta, rápido e barato. Mais do que ar puro e qualidade de vida, isso tem movido as pessoas a deixarem as cidades e irem morar em locais mais baratos. Podem continuar comprando e ainda tem mais dinheiro.

O crescimento do mundo das compras à distância ampliou um dos seus submundos, o de telemarketing. Aquele das pessoas que te ligam, com uma certa voz de intimidade. “Oi, Fulano. Tudo bem? Como você está? Que ótimo. Olha só, você foi escolhido para poder estar realizando um investimento…”

Desviando um pouco o assunto, as empresas sabem mais dos meus dados do que eu. O Google, por exemplo, ouve o que falo o dia inteiro. Uma pessoa fez um experimento para tentar confirmar essa fiscalização. Passou a mencionar em suas conversas que queria viajar para a “Namíbia”. Cerca de dez dias depois, começaram a chegar os anúncios oferecendo passagens para Namíbia. Eu já decidi que, quando me der um daqueles brancos e esquecer alguma coisa, como o meu CPF, vou ligar aleatoriamente para qualquer empresa e perguntar. Para alguma coisa essa invasão de privacidade tem que servir.

Retornando ao motivo da crônica, vou contar essa história que ouvi ontem e é ótima.

Um amigo, que chamarei de Curioso, recebeu a ligação sobre um desses “investimentos” imperdíveis. Antes que o vendedor evoluísse no seu discurso padrão, o Curioso lhe propôs um negócio.

— Só um pouquinho! Tudo bem, tu queres me vender esse apartamento, então deixa eu tentar te vender também. Eu ofereço meus serviços e depois eu ouço toda a tua proposta. Pode ser?

O vendedor, inseguro com aquela quebra do roteiro, gaguejou, mas acabou aceitando. O Curioso continuou.

— Ótimo! Pois então, eu sou proctologista.

Um momento de silêncio. Ele o deixou absorver a informação.

— Como está o teu ânus? Sentiu alguma dor nele nesses últimos meses. Alguma alteração de cor? Qual foi a última vez que você o revisou? É importante para a saúde…

A ligação foi cortada.

O Curioso ficou ofendido. Havia uma clara discriminação ali. A empresa podia lhe ligar oferecer o que fosse; ele não podia fazer o mesmo como o seu honesto serviço. Pensou em uma ação por dano moral, mas acabou relevando.

Em um mundo de compras, falar sobre saúde chega a ser ofensivo.

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