Eu sou o teu Deus

Eu sou o teu Deus

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O Joelho esquerdo doía. Desde o final da infância não sentia aquela pontada. A reza diária, ao acordar, criara uma espécie de carapaça. Um couro grosso e escurecido, como se fosse um enxerto de pele de rinoceronte. Feio, mas útil à sua missão como pastor. Ainda com as mãos unidas, mudou o equilíbrio do corpo. O joelho direito começou a doer também. Era a velhice, concluiu. Contra ela, sequer a reza adiantava.

Esforçou-se para focar na oração, oferecendo a dor como uma provação ao Senhor. Sua concentração vacilava. Além da dor, o sermão daquela noite o incomodava. Tinha que deixar claro ao seu povo, mais uma vez, que não poderiam tolerar a ditadura da veadagem. Estavam em todos os locais. Na televisão, no judiciário, na política… Até mesmo misturados entre os fiéis! Levantava os olhos para a audiência e lá estava encravada a erva daninha da sodomia! Seu coração acelerou e a oração perdeu o rumo. A boca se torceu um pouco em direção ao nariz, como quando se exaltava em meio à pregação.

Uma gargalhada inundou a sala.

Ele tomou um susto. A gargalhada continuava, alta. Parecia estar dentro da sua cabeça. Olhou em volta, com olhos estalados. Não havia ninguém. Girou mais de uma vez, para todos os lados, apenas para confirmar. Estava sozinho no quarto.

Quando ameaçou levantar-se, a imagem do adolescente flutuou ao lado da grande cruz de madeira, que mantinha centralizada em meio à parede. Ele deu um grito e caiu mesmo para trás.

— O quê! O que é isso?!

A gargalhada aumentou. Quase sem ar, a voz fina preencheu todos os acantos da sua existência.

— Desculpe, desculpe… — Novo fluxo de risadas. — Merda. MERDA! Isso vai estragar toda a simulação! Merda!

— Simulação? Que é isso? Meu Deus! Que brincadeira é essa?

— O Juan, aquele puto. Me mandou essa holograf… Deixa para lá. Não ia entender. Mas é muito engraçada. Caralho! Acabei ligando a porra do microfone sem querer.

O pastor se colocou de pé e novamente olhou para os lados. Estava sendo alvo de uma brincadeira. Algum infiel. Alguém iria pagar por aquilo.

— O professor vai ficar muito brabo.

— Professor? Que professor? Apareça! Onde você está? — O Pastor correu até a porta, escancarando-a com força. Não havia ninguém na sala da casa. Ou melhor, havia. Do outro lado dela, o rosto flutuava. Era uma imagem embaçada, transparente, que se confundia com o fundo. Era de uma raça que o Pastor nunca havia visto. As risadas foram controladas. Lágrimas molhavam os cantos dos olhos grandes e redondos. A pele branca destacava a ausência de quaisquer cabelos. Estava em alguma idade entre um adolescente e um adulto.

— Fica tranquilo. Não morre do coração. Estou vendo aqui que tu está quase infartando. Eu posso perder ainda mais pontos se eu te matar assim.

O Pastor sentiu uma tontura e escorou as costas na parede da sala.

— O que está acontecendo? — Falou para si mesmo.

— Vou falar isso da forma mais simples possível. Não tem outra forma de dizer. Você é um trabalho de faculdade. Vive em uma simulação.

— Simulação? — O Pastor puxou uma cadeira e se sentou.

— Não quer um copo de água? Eu não tenho poderes ilimitados. Mas tu pode ir lá pegar.

— Água porra nenhuma! — O Pastor deu um tapa no tampo da mesa. — Quem está brincando comigo? Isso é coisa de satanás!

Depois de mais algumas risadas, o rosto suspenso respondeu.

— Não, não. Não é coisa de Satanás. Ao contrário. Eu sou o Deus, aquele para quem você reza todos os dias quando acorda. A simulação é minha. Basicamente, fora a gravidade, inércia e outras leis da física e da química, tudo o que aconteceu contigo foi criação minha.

— Não! Isso é mentira!

— Não é. Sabe aquelas verrugas no saco que tu tens vergonha desde criança? Coisa minha. Na verdade, foi ideia de um primo. De qualquer maneira, eu que coloquei aí. Sabe quando rezou para que o teu pai morresse, depois de ele te dar mais aquela surra? E ele morreu mesmo, bêbado, no acidente de carro daquela noite? Não tinha contado isso para ninguém, né? O acidente foi coisa minha. E aquela revelação que contas nos teus sermões, que ocorreu quando orava na beira de um penhasco em um retiro no Itaimbezinho? Como chamas ela mesmo? Ah, “o despertar da fé”! Nunca aconteceu. Nem no Itaimbezinho tu esteve, não é, seu mentiroso?

A tontura aumentava. O Pastor pensou que ia desmaiar.

— Como?… Por quê?

— Como? Bem, com um computador? Mais ou menos parecido com esses que conhece, só que beeem mais avançado. E por quê? Um trabalho na escola. Eles aproveitam para misturar várias cadeiras nessa simulação. Antropologia, sociologia, economia política, epistemologia… Um monte de coisa. O meu professor orientador é um chato. Nós escolhemos alguns estereótipos e trabalhamos com eles. É claro que o tempo aí pode passar bem mais rápido do que aqui. É uma das variantes que eu consigo controlar. Senão, é claro, nunca conseguiria terminar a simulação. Quer saber o teu?

— O meu?

— O teu estereótipo.

— Não! Não vou te ouvir mais! — O Pastor fechou os olhos e colocou as mãos nos ouvidos. A voz continua a falar com ele como se ele não tivesse feito nada.

— Família humilde e muito religiosa. Pouca instrução. Nenhum dinheiro. Pai alcoólatra. Mãe diarista. Deus e o diabo sempre foram o motivo à mão para tudo. É… Eu sei que você não tinha muita saída.

O Pastor levantou-se num pulo e correu para o quarto. Agarrou a bíblia na cabeceira, como quem segura um salva-vidas. A palavra do senhor. Ela o salvaria.

— Não, não salvará. A palavra do senhor aqui é minha. Não adianta ficar correndo para lá e para cá. Fica calmo. — Falou a cabeça.

— Onipresente somente o Senhor! — Gritou o Pastor.

— Que sou eu, Evandro. Essa conversa está ficando repetitiva. E sim, eu consigo monitorar aqui o que você pensa, embora não possa alterar isso. Só crio fatos. Se pudesse comandar a tua vontade, a simulação perderia o sentido. Então, podes te considerar uma pessoa como as outras. Só que digital. E, aliás, que merda! Todo esse trabalho até aqui e nem sei se o orientador vai admitir a simulação como válida. Que vacilo. Acho que vou ter que começar tudo de novo.

O Pastor sentou-se na cama, exausto. Não sabia o que fazer ou o que pensar. E se recordou de si. De encorajar o seu povo. A fé. Ela era o esteio nos momentos de desespero. Como aquele.

— Isso tudo é uma brincadeira! Não sei como estão fazendo, mas é. Deus não permitiria uma coisa assim. Não há nada da simulação na minha vida!

A voz deu uma risada amarga, que não combinava com o seu tom agudo.

— Ah é, esperto? E como tu saberia? Acha que só porque acredita, existe um Deus? Que nada faria sentido sem ele? A realidade não dá a mínima bola para o que você quer ou para o que deseja. Já estou até gostando de ter errado. Sempre quis te dizer isso.

— Eu sei! Essa é a vida real!

— Para ti, é a vida real. Para mim, você é um monte de números que pensam ser gente. Sem ofensa. Pensa nisso. Como você saberia a diferença? Lembrei agora daquela tua frase. Até tinha recortado ela para a conclusão do trabalho, que agora vai para o lixo. Como era? Sim. Está aqui. “Ciência só vale para o que a gente vê. O que a gente não vê é o universo do Senhor”. Disse isso em uma pregação.

O Pastor tentava se agarrar na sua fé, mas ela vacilava.

— Eu vou ter que admitir que esse teu sofrimento está me dando um pouco de prazer. Na verdade, nunca fui muito com a tua cara. O orientador me explicou todo o desenvolvimento da tua personalidade. Disse para eu não me envolver emocionalmente. Não julgar. Que o estereótipo não tinha culpa. Ele era apenas um padrão. Essas coisas. Não consegui.

A cabeça balançava de um lado a outro, em lamentação.

— Eu te dei umas chances. Lembra aquele convite para um curso técnico? E o Mahycon, que tu deixou de falar por não ser da Igreja? Só te dava bons conselhos. Era eu, ali, tentando influir. Sempre foi surdo para boas ideias.

O sorriso sumiu do rosto flutuante.

— Você discrimina todo mundo! É a forma de te sentires um pouco melhor. Mais confiante. Superior. Diz que a palavra de Deus é Amor, mas só prega o ódio. Nega igualdade às mulheres. Nega a ciência. Acha que todo mundo é comunista. Fala sempre contra os homossexuais. Aliás, — uma pequena risada — quando vais admitir que é gay? Acha que eu não sei da tua paixão pelo Mahycon? Tudo que gosta é culpa do demônio.

Os grandes olhos redondos encararam severamente o Pastor.

— Pensando bem, não vou sentir nenhuma saudade de ti.

— Eu não acredito em nada do que dizes!

O Pastor ergueu a bíblia em direção ao rosto.

— Eu sei.

Salvou os dados e reiniciou a simulação.

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