Como uma lagartixa

Como uma lagartixa

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Esses dias, vi um vídeo de um homem pendurado no friso de um prédio altíssimo, como se fosse um pombo. Ao contrário de qualquer pombo, contudo, estava seminu e, obviamente, não tinha asas. O risco de morte era iminente. Contudo, preferia ficar se equilibrando a dezenas de metros do chão do que entrar novamente no apartamento.

Ali fora, a morte era apenas uma possibilidade. Lá dentro, era certa.

E aquelas cenas angustiantes e, confesso, cômicas, fizeram com que eu me recordasse da história de um conhecido.

Essa é do tempo pré-Enem. Proliferavam cursinhos. Nosso herói cursava um deles. Mesmo focado nos estudos, acabou se engraçando pela formosura de uma das colegas de sala.

Depois daquela negociação inicial, tão necessária no tempo do namoro analógico… Abrindo parênteses, não tínhamos aplicativos e redes sociais, que fazem mais de 90% do trabalho. Era necessário chamar a atenção da pessoa, revelar-se encantador-bonito-inteligente-cheiroso, falar olhando nos olhos, improvisar… Não sei como a humanidade conseguia se reproduzir.

Voltando à história, nosso herói acabou vencendo as barreiras (a bem da verdade, não foram muitas nesse caso) e começou um relacionamento. Naquela época, existiam apenas duas categorias de relacionamento. Namorar e “ficar”. Esse último era uma grande inovação, que escandalizava os nossos pais. Você lhes falava que beijávamos (entre outras coisas) a mesma pessoa em várias oportunidades, sem qualquer espécie de compromisso, e eles nos imaginavam chafurdando no pântano da devassidão. Esses dias, minha filha mais velha esclareceu que foi criada mais uma classificação entre as duas, o “ficante sério”. Mas isso é assunto para outra crônica.

Já na primeira vez juntos, nosso herói descobriu que a menina morava sozinha em Porto Alegre, o que a tornou imensamente mais atraente. Os pais a haviam mandado estudar na capital. E descobriu também outra coisa: era noiva.

Bem, respondeu ele, se você não se importa com esse detalhe, eu que não vou me importar. E seguiram-se diversos encontros amorosos, intercalados com as visitas do noivo, filho de fazendeiros, que a visitava aos finais de semana.

Todos já pressentem onde essa história vai dar. Aliás, originalidade não é o forte de enredos com traição amorosa. Sabemos o roteiro, quer por tê-lo visto, com pequenas variações, milhares de vezes, quer por, mesmo não admitindo, termos participado de algum como personagem.

Em uma quinta-feira qualquer, estava o nosso herói sem roupa, no início de mais um intercurso carinhoso, quando se ouviram barulhos na porta da frente. Só podia ser uma pessoa — o noivo. Ele resolveu fazer uma surpresa à sua amada, aparecendo sem avisar.

Passado o primeiro momento de pavor, a jovem disse com olhos apavorados e rasos d’água:

— Ele anda armado!

A situação do campo de batalha era a seguinte. O apartamento de um quarto e sala possuía, no máximo, uns 20 metros quadrados. Localizava-se no segundo andar de prédio antigo, com aqueles longos e estreitos corredores, povoado por portas, onde mal passava uma pessoa andando de frente. Utilizando os pés, só havia uma entrada e saída, a porta, onde estavam, relembro, o noivo e a sua arma.

Votamos àquele dilema desse texto. Em direção à porta, a morte era certa. Pela janela, talvez não ocorresse. Nosso herói correu pelo quarto escuro catando suas roupas e olhou pela janela. Abaixo deles, o apartamento do primeiro andar tinha uma pequena sacada, utilizada como área de serviço. Jogou suas roupas ali, agarrou-se no parapeito e escorregou nu pela parede, em uma imitação tacanha de lagartixa. Desceu arranhando-se no antigo reboco da parede externa e aterrissou dolorido, mas sem quebrar nada.

Enquanto colocava silenciosamente suas roupas, ouvia as vozes no quarto. Não conseguia entender o que diziam. Esperava que a cabeça do noivo surgisse a qualquer momento pela janela, instantes antes da arma começar a disparar. Depois de vestido, tentou entender onde estava.

Olhou pela janelinha de vidro, centralizada na porta que separava a sacada do apartamento. Na cozinha, uma mãe de pijama dava comida aos dois filhos. O maior não deveria ter cinco anos.

Sem outras opções, ele bateu na janela. A pobre mulher abriu a boca em um grito mudo de pavor. As crianças o olhavam com curiosidade. Ele, gesticulou tentando demonstrar que era inofensivo. Abriu a porta e entrou cozinha adentro, com a mulher tentando abraçar os filhos. Perguntou onde ficava a porta da rua e ela indicou com o dedo. Quando estava saindo, voltou e pediu para a mãe, quase desmaiada, liberar a porta do prédio com o interfone. Ela hesitou, mas fez um sim mudo.

E assim, nosso herói ganhou as ruas, deixando uma mãe traumatizada para trás. No caminho para casa, ainda sob o efeito da adrenalina, pensou que talvez estivesse na hora de arranjar uma namorada. Alguém, de preferência, sem noivo.

E, por falar no noivo, ele nunca descobriu.

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