Charlottesville

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Se Hitler invadisse o Inferno,
eu cogitaria de uma aliança com o Demônio.
(Sir Winston Churchill)

A lei de Godwin foi elaborada pelo advogado Mike Godwin em meados dos anos 1990, quando as discussões on-line se resumiam a fóruns da usenet. A usenet, para quem não a conheceu, foi um dos embriões das atuais redes sociais. Coisa de “nerd raiz”, para utilizar o linguajar de hoje.

A lei diz que, quanto mais uma discussão se estende, maior é a chance de alguém ser comparado a Hitler. Por que Hitler? Porque ele personifica o mais equivocado e odioso conjunto sistemático de ideias que alguém pode pensar. É um exemplo do pior que a humanidade produziu e, consequentemente, a ofensa extrema a qualquer debatedor.

Há poucos dias, ocorreu uma grande reunião de membros da “supremacia branca” na cidade de Charlottesville, no estado da Virgínia, Estados Unidos. É do conceito de “supremacia” que nasceram grupos como a Ku Klux Klan, aqueles homens que se escondiam atrás de máscaras pontudas, usavam batinas brancas e apareciam montados em cavalos para queimar cruzes e defender a raça “branca”. Em sua maioria, mombros do exército derrotado na Guerra Civil americana. Pessoas que caçavam, linchavam e enforcavam negros “atrevidos”. Negros, por exemplo, que ousavam sentar em bancos destinados a brancos ou que não baixavam a cabeça, reconhecendo a sua inferioridade.

Em Charlottesville, uniram-se a eles nazistas declarados, além de outros integrantes da extrema-direita. O que resultou dessa manifestação? Morte e ferimentos.

Existem ideias políticas, econômicas, morais e religiosas que carregam a semente de destruição da própria democracia. São subversivas no pior sentido. Elas utilizam o respeito ao livre pensamento e à manifestação desse pensamento, para tentar acabar exatamente com esta liberdade.

Usam a liberdade a seu favor, mas com a intenção de negá-la aos demais.

Democracia pressupõe o respeito às diferenças. Sem esse respeito, saímos do campo da civilidade e entramos no mundo animal: o da prevalência do mais forte sobre o mais fraco. E a humanidade é melhor do que isso.

Essa incompatibilidade entre os próprios fundamentos da democracia e as ideias fundadas sobre o ódio é o que justifica a restrição à sua divulgação. A tolerância democrática é tão ampla, que permite aos cidadãos manter suas convicções antidemocráticas. O que não permite é a sua apologia pública e, principalmente, atitudes que não vão de acordo com essas convicções doentias.

Divulgar a intolerância acaba por atrair, como a história demonstra, pessoas frustradas com a sua própria vida; pessoas que procuram um culpado e uma válvula de escape para a raiva contra a sua miséria cotidiana. Esses culpados são variados. Os judeus, os imigrantes, os homossexuais, o torcedor do outro time. A variação é somente de lugar e grupo, mas os mecanismos de acionamento são sempre os mesmos. A ignorância, a miséria e o ódio.

A disseminação desse tipo de ideia está na origem de todos os preconceitos e é o motivo de sofrimento de milhões de pessoas.

Em uma sociedade sadia, esse tipo pensamento tende a ficar limitado a um grupo muito pequeno de pessoas. Alguns, claramente, vítimas de problemas mentais. Há uma repreensão natural a esses extremistas, mas o problema é que as sociedades ocidentais não estão sadias. O trio ignorância, miséria e ódio está em ascensão e isso se reflete, inclusive, na nossa representação política.

Manifestações como a Charlottesville são sintomas de que estamos falhando na construção de um mundo mais justo e solidário.

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