A frase de abertura

A frase de abertura

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Caralho. Caralho. Caralho. Caralho. Buceta.

A primeira frase de um livro estabelece a conexão entre a imaginação do escritor e a mente do leitor. Se escrever é telepatia, como diz Stephen King, ela é o botão sintonia dessa frequência mental; uma isca, um aviso e uma anunciação. Tudo isso deve estar ali, disposto de um jeito único.

Há, claro, escritores que não conseguem. A maioria, inclusive. Grandes frases de abertura são o mais próximo que se chega da certeza de se ter um bom livro nas mãos. Você abre a capa e passa os olhos nas orelhas. Ainda indeciso, lê a primeira linha. É ali o momento da conexão. Se a chamada nem soar ou se não lhe der vontade de atender, esqueça. Feche o livro e siga a sua procura.

Você pega nas mãos, desajeitadamente, o paralelepípedo chamado Anna Kariênina. Está em dúvida. Alguém lhe indicou, mas achas que não conseguirás chegar ao final daquela maratona literária. Escrito por um russo, no século XIX?! Abre desconfiado a primeira página e Tolstói lhe dá um tapa na cara:

Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.

Difícil não querer saber o que vem a seguir. Aliás, se você não quiser, o problema está em você, não no livro.

Como em toda boa arte, não há um manual para grandes frases de abertura. Os críticos podem agrupá-las, catalogá-las, dissecá-las e teorizar, movidos por aquele desejo de fazer parte de algo que lhes foge. Cada uma, contudo, é parte do seu próprio sistema, girando no entorno do talento do seu escritor e banhadas por seu sol.

Em um momento da minha vida no qual eu estava desencantado com a literatura de ficção, lendo sucessivos livros ruins, deparei-me com a seguinte abertura:

No ano dos meus noventa anos quis me dar de presente uma noite de amor louco com uma adolescente virgem.

Não há meio termo para um livro que inicia assim. Ou é horroroso ou é maravilhoso. E como fazer um texto bom, poético e delicado, depois de o livro abrir com a declaração de um homem velho, que deseja deflorar uma adolescente? Pergunte a Gabriel García Márquez. Melhor. Melhor, leia Memória das Minhas Putas Tristes.

Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.

Está tudo aí. Kafka provoca a sua curiosidade, avisa sobre o mundo que se abre e anuncia o enredo da trama. A Metamorfose tem uma abertura perfeita.

E aquela sucessão de palavrões no início do texto?

Ela faz parte da minha memória afetiva. Na adolescência, era um rato que ficava cheirando os balaios de saldos da Feira do Livro, em busca de guloseimas ficcionais. Com o olhar de um ourives e pouco dinheiro, catava livros velhos e edições encalhadas, que estavam jogadas nas cestas ao lado das bancas. Ler a primeira frase era uma das formas de separar o luxo do lixo.

Numa dessas expedições, um título chamou minha atenção. Porcos com Asas. Porcos com asas? Que péssimo título era aquele? O subtítulo, contudo, já era mais promissor. Diário Sexo-Político de Dois Adolescentes. Três coisas que me fascinavam: sexo, política e dois adolescentes. Lembro o leitor desavisado, que naquela época somente o pentágono e universidades utilizavam a internet. Ou seja, não eram coisas que se via quando se queria e, muito menos, juntas. Fui para a primeira linha. E ali estava. Escatologia pura.

Tudo o que um adolescente sadio precisa.

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