O que nos diferencia do gado?

O que nos diferencia do gado?

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O que é pior para uma sociedade, pouca ou muita informação?

A questão pode lhe parecer boba. Você pensou rapidamente: “É claro que, quanto maior o acesso a informação, melhor será”.

Será, mesmo? A questão pode não ser tão simples.

Eu gosto bastante de distopias. Se você não está habituado com o termo, são aquelas obras onde se criam sociedades disfuncionais. Exercícios de imaginação em que são extrapolados problemas que já possuímos. As distopias estão presentes em todas as manifestações artísticas, como nas telas do pintor Hieronymus Bosch, na virada do século XV para o XVII, ou na música do lisérgico Frank Zappa, em seu álbum Joe´s Garage.

Duas das mais conhecidas são os livros 1984 de George Orwell e Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley. Mesmo quem não as leu, provavelmente já ouviu falar deles. Esta semana, um amigo me enviou uma comparação realizada pelo ilustrador Stuart Mc Millen, sobre como o controle da informação é tratado em cada uma das obras.

Em 1984, o Estado controla a informação. Serve-a em gotas para a sociedade e altera livremente os registros, inclusive do passado. Esta é a forma que utiliza para conduzir as pessoas nas direções que bem entende. Escrita em 1948 (84 é a simples inversão dos números finais), a obra era uma crítica e um alerta ao perigo representado por estados totalitários.

No outro extremo, temos o Admirável Mundo Novo, onde a população é controlada, entre outros meios, por uma droga que induz felicidade e por sistemas de entretenimento. Na distopia de Huxley, não há restrição à informação, mas sim o excesso dela. Há uma louvação ao prazer, que passa a ser o centro da vida das pessoas.

Não lhe parece familiar?

Com a disseminação dos meios de comunicação e da Internet, a distopia de Orwell é cada dia mais difícil de se realizar. Talvez em países como a Coreia do Norte ou em regiões da Ásia e África onde não há infraestrutura, sequer luz elétrica, seja possível alienar a população do restante do mundo e alimentá-la apenas com as informações que se deseja.

E no caso da de Huxley? Esse excesso de informação, essa ausência de reflexão e esse hedonismo (ou seja, fazer do prazer a coisa mais importante da sua vida) não lhe parecem familiares? Não é para algo parecido que estamos caminhando?

O fluxo de informações não garante, por si só, que estejamos bem informados. Ao contrário, pode reforçar ideias equivocadas e preconceitos. Você não entende como a Terra pode ser um geoide e acredita que ela é plana? Vá na Internet que há toda uma fundamentação (absurda, mas há) para o seu ponto de vista. Acha que os brancos são superiores aos negros, pardos, amarelos e verdes? A mesma coisa. Quer tornar uma ditadura militar em um movimento? Idem.

Nesse ponto, o texto parece que caminha para uma defesa da censura, como forma de tornar a sociedade um lugar mais sadio. Não, não é nada disso. Democracia é incompatível com censura prévia. Ponto. Mesmo que eu defendesse a censura prévia em casos extremos, sequer acredito ser ela possível. o fenômeno das notícias reconhecidamente falsas (as chamadas fakes news). A circulação dessas somente aumentará nos próximos anos.

Então, o que fazer?

A discussão, em verdade está desfocada.

O problema não está na divulgação de informações. O problema é quem as recebe. Ou seja, o problema somos nós.

Mais do que em qualquer época, é necessário ensinar as pessoas a ter juízo crítico. A pensar, em resumo. A desenvolver mecanismos racionais e de lógica, que lhes permitam ser trituradores vivos das toneladas de lixo que recebem diariamente.

Como fazer isso? Existem várias formas e este texto já está longo. Falarei, apenas, da principal. O ponto de partida para qualquer pensamento racional: duvide, sempre.

Duvide do que você acredita. Daquilo que lhe dizem. Daquilo que você lê, ouve e vê. Duvide deste texto.

Duvide dos outros e, principalmente, duvide de você. Coloque-se em análise. Confronte suas convicções com os fatos. Vá atrás de fontes confiáveis.

Acreditar cegamente em algo é abrir mão da única coisa que nos separa do gado no rebanho, a possibilidade de raciocinarmos.

O problema não é a informação. O problema é acreditar nela.

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