O direito à impunidade

O direito à impunidade

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“Os animais são todos iguais, mas uns são mais iguais que outros.”
(Orwell, George. A Revolução dos Bichos.)

Cada história de contos de fadas possui uma moral. Há um ensinamento em cada um daqueles textos. Não ande sozinha na floresta. Não seja preguiçoso. E assim por diante. Depois delas, vêm os desenhos. Há heróis e vilões. Os bons e os maus. Esperamos que estes, em algum momento, tenham a sua punição e aqueles sejam recompensados. Por fim, vêm os filmes, novelas e outras histórias para “adultos”, que reproduzem o mesmo modelo, com um pouco mais de elaboração, sangue e sexo.

Este é o arquétipo que fica gravado no nosso inconsciente: os outros, se agirem mal, devem sofrer as consequências.

Você é um adulto e está parada no trânsito depois de um dia horrível de trabalho. Seu filho está esperando na creche e está quase na hora de ela fechar. O sinal acaba de ficar vermelho, mas você vê uma fresta e vai. Tem que chegar logo. Para no meio do cruzamento e tranca todo o trânsito, nos dois sentidos.

A prova é amanhã, mas você não está a fim de estudar. Faltam apenas três episódios para completar a temporada da sua série e não vai trocar isso por biologia. Depois, fará uma cola rápida e, afinal, sentará ao lado da Marta. Ela sempre estuda.

Nenhum desses dois “vocês” crê estar fazendo algo errado. Mesmo se tiverem esta noção, acreditam que a sua “mínima transgressão” é plenamente justificada.

O brasileiro vive uma dualidade. Espera que suas transgressões passem impunes e que as dos outros sejam punidas. Essa incongruência está cravada na nossa moral coletiva.

A certeza da impunidade está na raiz dos palavrões contra um radar que nos flagra dirigindo acima do limite de velocidade ou na nossa revolta contra algum imposto que não conseguimos sonegar.

Não somos ensinados a ter vergonha do simples fato de descumprir as normas. Vergonha é ser apanhado, enquanto os outros não são. Reproduzimos o mesmo comportamento dos nossos pais em uma corrida social para ver quem melhor consegue contornar as regras sociais e legais. Achamos esta corrida, em si, natural. Contudo, cuidado! Não caia durante ela. Todos os outros corredores pararão, olharão com reprovação, apontarão dedos acusadores e dirão severas palavras carregadas de falsa moralidade. E, depois, continuarão suas próprias corridas.

O brasileiro tem um direito implícito e não previsto expressamente na Constituição Federal. Aliás, que se coloca antes dela, pois está na origem da nossa sociedade. O direito à impunidade.

Cada brasileiro considera-se a si mesmo como um ungido contra os males do cumprimento da lei. Defende a sua impunidade com o mesmo radicalismo que defende a punição de todos os outros ao seu redor. Vivemos uma esquizofrenia legal coletiva.

Esse comportamento ficou mais evidente nos últimos meses. Defensores da corrente política A vociferaram que os defensores da corrente B deveriam ser acorrentados às galés. E alguns, surpreendentemente, foram mandados para a prisão. Agora, é a vez dos defensores da corrente B exigirem o mesmo.

Estão se dando conta, contudo, que o direito à impunidade de todos eles foi violado. E não perdoarão. Leis virão e deixarão claro o que já tinham certeza. Não podem ser punidos. Nunca foram, por que mudar a regra agora? Consideram isso uma injustiça.

Eles mudarão a lei e escaparão.
E nós, o que faremos?
Ficaremos presos nas nossas pequenas transgressões diárias, lamentando vivermos em um país assim, enquanto jogamos papéis sujos no chão e continuamos a nossa caminhada.

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