O dia em que nada dá certo

O dia em que nada dá certo

Download desta crônica em PDF

Existem alguns dias nos quais a vida resolve brincar contigo. Você sabe que entrou na lista de brincadeira do destino quando passa, por exemplo, pela clássica tríade: despertador desligado, chuveiro com resistência queimada e chuva torrencial seguida de “ei, quem pegou o meu guarda-chuva?”.

Esta semana tive o meu dia de desventuras em série.
Ir ao futebol, para mim, é uma atividade de higiene mental. No campo, sofra ou fique feliz, desconecto-me um pouco dos problemas reais. Metódico que sou, gosto de ir com alguma antecedência, tranquilamente, ouvindo o rádio e entrando no espírito da partida.

O tempo, para todos nós, anda mais escasso do que honestidade em Brasília. Saí quase uma hora depois do programado, abraçado que estava em uma sentença que não queria me largar. Com ela, foi-se a minha tranquila antecedência. Chamei um carro em um conhecido aplicativo e fiquei pronto na frente de casa, acompanhando o carro se aproximar lentamente no mapa. Faltando duas quadras, virou-se e foi embora. Comecei a reclamar para o telefone. Era um aviso, mas eu não o ouvi.

Chamei outro, que demorou mais dez minutos. Já estava atrasado. Um amigo havia me convidado para comer um churrasco em um parque anexo ao Estádio. Saí de casa sem comer nada. No meio do caminho, entramos em um engarrafamento surpresa. Entramos ali e ali ficamos. Andávamos dois metros; parávamos um minuto. Ao nosso redor, passageiros de outros carros desciam para se aliviar em moitas. Era esse o nosso ritmo. Liguei para o meu amigo e descobri que o microfone do meu celular parou de funcionar. Ouvia, mas não conseguia falar.

Lá pelas tantas, cheguei. Saí andando pelo parque, olhando de churrasqueira em churrasqueira, vendo grupos felizes de amigos, comendo e bebendo. Eu parecia um daqueles cachorros magros, que vem mendigar um pedaço de carne para ser enxotado em seguida. Mandei mensagens, e nada. Depois de uma longa caminhada, já suado, recebi a resposta. A carne havia acabado e já estavam indo para dentro do estádio. Catei minha fome e frustração e também fui.

No caminho, a primeira alegria. Haviam instalado um pequeno food truck no pátio do estádio. A noite estava salva, pensei. O destino gargalhou e acionou mais algumas das suas alavancas.

Existiam somente duas barracas de comida. Uma que vendia um hambúrguer gourmet (o pão era verde!) e outra que vendia algo chamado “mistura”. Dos dois, achei menos perigoso o hambúrguer. Aproximei-me do balcão e o atendente, com ar sádico, somente riu e apontou um dedo para uma longa fila do outro lado do pátio. Tinha que comprar a “ficha”. Lá fui, munido de paciência. Depois de uns dez minutos de fila, consegui os tíquetes para o hambúrguer-verde e um chope. O mínimo que eu merecia, àquela altura, era um chope. Postei-me na fila do balcão das bebidas.

Exatamente na minha vez, o que aconteceu? Acabou o barril. Fiquei observando, enquanto o atendente “pouca prática” tentava encaixar a válvula e fazer a máquina retornar à vida. Quase pulei o balcão para fazer aquilo. Finalmente, consegui o meu copo. Quente. Não, muito quente. Como, eu pergunto, alguém consegue servir chope quente? A refrigeração é elétrica. Esbocei uma reclamação, mas fui empurrado pela horda de torcedores ansiosos atrás de mim. Saí com aquele chá de cevada e fui pegar o meu hambúrguer-marciano.

Quando voltei no balcão, o mesmo atendente sorriu, desta vez com um ar debochado, e sentenciou: acabou o hambúrguer. Ali, confesso, senti os efeitos da derrota. Fiquei olhando para ele, como uma criança de quem tiraram o chocolate. Como se estivesse me fazendo um favor, disse que me devolveriam o dinheiro. E apontou para a mesma fila. Como ainda tinha um pingo de capacidade de indignação, armei-me para mandar um palavrão. Alguém apareceu nesse instante e disse que eu poderia pegar um lanche “mistura”, que era entregue no trailer ao lado. Como não estava ali para brigar, conformei-me. Tomei um gole do chope quente e segui minha procissão.

Óbvio que o atendente do trailer ao lado não quis me entregar o lanche. Apontou o dedo para a mesma fila e disse que eu deveria trocar a ficha. Pois é, eu era o protagonista de um livro do Kafka passado em um food truck. Depois de alguma argumentação e, talvez, uma ou duas ameaças de morte, consegui a minha “mistura”.

Sentei em uma das mesas coletivas como um animal faminto, olhando sobre os ombros e arregaçando os dentes. O primeiro pedaço eu sequer senti o gosto. O segundo, achei passável. No terceiro, mordi algo duro, que não consegui identificar pela textura ou sabor. Retirei da boca o estranho objeto e vi que era um pedaço de gordura. Não aquela gordura normal, que eu já não gosto. O que tinha nas minhas mãos era a gordura dura, branca, que se tira da carne e joga no lixo ou no fogo antes do churrasco. Abri o pão da “mistura” e vi que havia alguns pedaços de carne. Poucos e de origem desconhecida, que eram como botes perdidos no meio do mar daqueles pedaços de gordura branca.

Olhando a “mistura”, tive que tomar uma decisão. E resolvi me render às piadas do destino. Sorri, joguei a “mistura” no seu devido lugar, o lixo, e fui para dentro do estádio. O destino tinha me provado quem mandava ali.

Querem saber como foi o jogo?
O que vocês acham?

Comentários

Deixe uma resposta