Histórias de torcedores de futebol

Histórias de torcedores de futebol

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“Algumas pessoas acreditam que futebol é questão de vida ou morte.
Fico muito decepcionado com essa atitude.
Eu posso assegurar que futebol é muito, muito mais importante”

Bill Shankly

 

Era a final do campeonato brasileiro de 1988 no Beira-Rio. Quase 80 mil pessoas se espremiam nas arquibancadas, oprimidas pelo sufocante calor de fevereiro. Meu amigo estava atrasado. Seu grupo chegou minutos antes de o jogo começar. Ele, a mulher, a irmã dela e seu marido. O cunhado deixou os três na porta estádio e saiu para tentar estacionar. O detalhe é que as duas irmãs estavam grávidas. Bem grávidas.

E lá foi ele, com a pressa possível, enfiando-se com as duas por entre a multidão, que naquela hora já tomava todos os espaços, até o corredor que fica no pé da arquibancada. As barrigas na frente, elas coladas atrás e ele no final, com a mão no ombro de ambas, para não se perderem. Depois de percorrerem meio estádio, à procura de uma brecha na qual as irmãs coubessem, começaram a ouvir um coro diferente. Ele olha cima e a torcida aplaude entusiasmada. Milhares de pessoas gritam olhando para ele:

— Galo! Galo! Galo!

Não é qualquer um que leva a mulher grávida ao jogo. Duas juntas então…

Final da Copa do Brasil de 1992. O Internacional estava em uma seca de mais de dez anos sem grandes títulos. A final seria no domingo, no Beira-Rio. Na sexta-feira anterior, parti com meu Opala (na verdade, do meu pai), e outros cinco dentro (naquele tempo, achávamos que cinto de segurança era peça de decoração), para o sítio da família, nos arredores da praia de Cidreira. Jogaríamos um campeonato de futebol de várzea e eu retornaria a tempo de ver o jogo.

Cinco quilômetros antes de chegarmos, o motor morreu. Com ele morreu o freio e a direção hidráulica virou uma pedra. Entramos picando no acostamento, só com a redução de marchas da caixa e o freio de mão. Depois, empurramos o carro até o sítio, a maior parte em estrada de terra.

No domingo, depois de perdermos o campeonato, o carro ainda não estava pronto. A peça só chegaria de Porto Alegre na segunda. Todos arranjaram meios alternativos para ir embora. Ônibus, carona, valia qualquer coisa. Ficamos apenas eu, um amigo e uma TV que pegava, muito mal, apenas um canal. Naqueles tempos, não se anunciava a transmissão de um jogo da final para a própria região. Ela poderia ocorrer ou não, de surpresa, de acordo com elementos objetivos, como o humor do presidente do clube.

Abri uma cerveja, sentei na frente da TV e fiquei aguardando. Minutos antes, como achei que certamente ocorreria, apareceram as imagens do estádio. Pelo menos isso, pensei. Quando o juiz apitou o início, as imagens foram substituídas por um filme.

Dei um pulo da cadeira, pensando no que fazer. Havia um velho rádio na casa, que pegava transmissão em ondas curtas. Assim, depois de improvisar uma antena, comecei a ouvir o jogo quase na metade do primeiro tempo. O som começava a sumir lentamente, acompanhando a onda de transmissão. Depois de alguns instantes mudo, o rádio voltava à vida lentamente, até atingir o pico da onda de transmissão de novo e iniciar outra descida. Ouvi o jogo inteiro assim. Óbvio que, no pênalti final, o som foi reduzindo, reduzindo até sumir no momento em que Célio Silva partia para a bola. Peguei apenas o final do grito de gol.

Há uns anos, foi assistir uma partida do Avaí, no Estádio da Ressacada. Foi como atravessar um portal para os anos cinquenta. Uma volta à época romântica. Na entrada, fui vacinado contra a rubéola. Algodão-doce era vendido nas arquibancadas. A torcida comia amendoim. Lá pelas tantas, um torcedor se levanta indignado com o lateral direito, rosto vermelho, veias saltadas de raiva, e grita: “Seu feio!”.

As histórias de torcedores são melhores do que as histórias do jogo em si. Elas têm dois dos grandes ingredientes para um bom livro, paixão e loucura. Só que elas são reais. Ocorrem todos os dias, com milhões de pessoas, por toda a Terra. Elas fazem parte da sua vida. Acontecem contigo, com o seu vizinho ou, no máximo, se você não viver numa ilha ou for um chato absoluto, com alguém próximo.

Torcer é acreditar em algo além de si mesmo. É sair um pouco da sua vida. Abandonar as nossas preocupações cotidianas.

É como uma boa ficção, escrita pela realidade.

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