Fila de adoção

Fila de adoção

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Esta semana assinei uma petição simples. Poucas frases, que mal conseguiam encher um parágrafo. Assinei e fiquei relendo o papel. “Fulano e Sicrana [qualificações] requerem que seus nomes sejam retirados da lista de adoção etc.”

Palavras que compreendiam todo um mundo que não foi. E um mundo que não seria.

Foram cerca de sete anos de espera. Em verdade, sete anos de silêncio. Nenhuma ligação, nenhuma posição, nenhuma informação. Nada. Depois do longo processo de análise e qualificação para entrarmos na lista, nunca mais tivemos qualquer notícia sobre o assunto. E sete anos alteram qualquer pessoa. Era um quando entrei na lista. Sou outro que sai.

Há sete anos, eu tinha 39, uma filha e a vontade ter outrx. Sentia o mundo como uma estrada de alta velocidade, com pistas e bifurcações que não conseguia contar. Hoje, tenho duas lindas filhas, 46 anos e vejo bem que a minha estrada está diminuindo. Duas ou três pistas no máximo, levando para um fim distante, ainda nebuloso, mas que sei estar lá.

Depois do nascimento da minha segunda filha, mantivemos o nosso pedido. Sempre quis adotar, mesmo antes de ser pai pela primeira vez. Já escrevi outros textos, nos quais falei que se tornar pai dá foco à vida. Deixa as coisas que importam mais nítidas. Não fáceis, mas sim mais importantes. Mais significativas. A experiência do nascimento da minha primeira filha deu àquele desejo de adotar um caráter de certeza. Eu sabia que havia alguma criança que precisava de um pai e amaria ser ele. Nossa família queria mais um integrante.

Essa criança existe. Melhor. “Essa” criança não. Essas. Dezenas, centenas, talvez milhares delas. As que têm sorte, estão em um abrigo ou em uma casa de passagem, junto com outras tantas, aguardando um lar. As que não tem, estão na rua, buscando comida e tentando entender e se ajustar ao mundo que lhes relega à calçada. Outras estão em algum barraco, aguardando a mãe recobrar-se dos efeitos do crack e lembrar da sua existência. Outras ainda… bem, outras ainda sofrem toda a espécie de miséria que a mente humana é tão fértil em criar.

Essas crianças precisam de pais. De verdadeiros pais. Que se importem, cuidem, eduquem e, mais importante, que as amem.

Mas entre essas crianças e eu, entre elas e a minha família, existe apenas um grande e silencioso vazio. Um vazio que, a partir dessa semana, não será mais preenchido.

Se eu tivesse lançado uma moeda no poço de desejos ou escrito uma folha e lançado no mar, o efeito do meu pedido de adoção seria o mesmo. Apenas palavras sussurradas ao vento.

O vazio entre essa criança e nós tem um nome. Ele se chama Poder Público.

Eu tenho certeza de que as pessoas envolvidas com as adoções, assistentes sociais, psicólogas, servidores, juízes, fazem o máximo que podem. Tem excelentes intenções. Procuram salvaguardar os interesses dos menores da melhor maneira possível, em situações que, muitas vezes, são impossíveis.

Imagino as dificuldades de encontrar adotantes para dois ou mais irmãos, para abandonados adolescentes, para crianças com doenças terminais ou crônicas, crianças com profundas sequelas emocionais. Eu sei e compreendo que todas estas questões são complexas, quando não insolúveis.

Mas, para mim e para a criança que “me” adotaria, o sistema não funcionou. O Poder Público não nos vinculou. Não estabeleceu o elo, como seria a sua função.

À nossa família resta a frustração, uma certa incompletude e imaginar como teria sido a vida com ela entre nós.

E para a criança?

Resta o vazio, embora eu torça que ele seja preenchido.

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