Feira do Livro

Feira do Livro

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Nada é mais importante para a saúde de uma
sociedade do que um balaio de livros baratos
colocado em meio a uma multidão de pessoas.

Ela morava em Hong Kong. Tinha cerca de cinquenta anos. Pequena, cabelo liso, moreno e muito simpática. Um estereótipo da mulher oriental. Nosso encontro ocorreu em um vagão do metrô, ao raiar do dia, no caminho para a maratona de Berlim, junto a outros corredores insones e nervosos.

Ela perguntou de onde vínhamos e respondi que de uma cidade no sul do Brasil. Ela ficou chocada ao saber que Porto Alegre (Happy Harbour, na tradução livre que fiz) tinha mais de um milhão de habitantes. Perguntou, então, se alguém treinava corrida no lugar de onde eu vinha.

Entendi que ela nos imaginava como silvícolas, andando seminus, com nossos cocares, em estradas de terra que seguem serpenteando ocas de barro. Expliquei que a nossa cidade era bem diferente disso. Ela não se convenceu totalmente.

Quando alguém lhes perguntar como é Porto Alegre, fujam da resposta simples. É mais fácil dizer que é o lugar do Inter, do Grêmio, do Ronaldinho, do Pato e do Falcão. Prefira algo mais profundo: é uma cidade com orquestra sinfônica e onde um dos principais e mais queridos eventos do ano é uma feira do livro.

A feira faz parte da identidade de Porto Alegre. Mesmo quem não gosta de ler, gosta da feira do livro. De andar pelos caminhos da praça, em meio aos estandes atolados de livros, margeados pelas árvores. Há um tempero de cultura no ar, como o de especiarias em uma feira livre.

Vivemos um momento de pessimismo, no qual vemos a cidade enfear, descuidada pelo Poder Público e maltratada pela sociedade. No qual posições intransigentes, discriminatórias e irracionais ganham força, colocando em dúvida as próprias razões de existência da nossa democracia. É exatamente agora que devemos cultivar e recuperar alguns dos nossos símbolos. E o espírito da feira do livro é exatamente isso para Porto Alegre. Um dos seus muitos rostos bonitos, a encarar de frente seus rostos feios.

Nada mais importante para a saúde de uma sociedade do que um balaio de livros baratos colocado em meia a uma multidão de pessoas. Não há verdadeiro e democrático espírito de cultura se ela é cara e inacessível à maioria. A feira pega o leitor pela mão e, quando a larga, deixa no seu rastro um livro.

Durante muitos anos, tive com amigos próximos a tradição de ir à inauguração da feira. Não pela solenidade, mas para aproveitar as melhores ofertas dos balaios, antes que alguém chegasse na frente. Íamos nós, de barraca em barraca, arrecadando as melhores ofertas em sacolas de plástico que nos machucavam as mãos com o peso. Li, assim, dezenas de livros que não compraria de outra forma. Agora, mais velho e chato, prefiro os horários com pouco movimento.

No ano passado, fiz um esforço enorme para lançar o meu primeiro livro na feira. Senti como se fechasse um ciclo. Devolvia a ela um fruto daquilo que nela colhi por muitos anos.

Não importa quem você é. Não importa o que gosta de ler. Não importa, até mesmo, se não gosta de ler. Vá à feira. Sinta o cheiro de histórias no ar. Olhe os velhos frequentadores caminhando atentos. Os casais trocando impressões. Os pais com as suas crianças. Coma uma pipoca doce (mas não pegue os livros com os dedos sujos!). Tire uma foto no lambe-lambe.

Veja uma Porto Alegre melhor.

Veja como podemos ser melhores.

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