A fábula da venda de olhos na galeria de arte

A fábula da venda de olhos na galeria de arte

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Então, vê agora por que os livros são tão odiados e temidos? Eles mostram os poros no rosto da vida.
As pessoas acomodadas só querem rostos de cera, sem poros, sem pêlos, sem expressão.
(Bradbury, Ray. Fahrenheit 451)

— Fecha os olhos! Põe a venda!

Gabriela tomou um susto com o grito próximo ao seu ouvido. Deu um passo para o lado, pronta para se defender, mas viu apenas um homem jovem, com olhar decidido, vestindo um terno claro. Mesmo não querendo, pensou que o tecido era feito de lã fria super 150. Um conhecimento instintivo do tempo em que trabalhou com design de moda. O corte era perfeito. Um traje caro. O homem estendia um pedaço de pano preto em direção ao rosto dela.

— Põe a venda! Agora! Põe a venda!

Ela foi um pouco para trás. O sorriso frio e cínico no rosto do homem de terno contrastava com a urgência na sua voz. As outras pessoas que estavam na ampla sala da galeria olhavam para a cena quietas, mas com atenção.

— Co-como assim? O que o senhor quer? — Ela se odiou por gaguejar, mas ainda não tinha se recuperado do susto. Tentou afastar a mão que quase roçava no seu nariz e virou o rosto para o lado.

— Não olhe para lá! — O homem apontou para um dos quadros e, com a mão que segurava o pano, tentou puxá-la pelo ombro no sentido contrário. Ela recuou novamente. Estava ficando encurralada.

— Ponha a venda! Agora!

— Senhor, acalme-se! Que loucura é essa? — Gabriela olhou em volta, à procura de um segurança. Havia um na entrada da sala, mas ele continuava com as mãos entrelaçadas atrás do corpo e o olhar impassível. Era como se nada estivesse acontecendo. Ela fez um gesto, chamando-o. Ele permaneceu imóvel.

— É a Lei! Cubra os olhos! Agora! Não olhe para a pornografia! — O homem de terno jogou o pano na cara de Gabriela. Ela tentou se esquivar, mas seu espaço havia acabado. Ela prendeu as pernas em uma das correntes que separavam as obras de arte da plateia e se desequilibrou. Apoiou-se na parede e sua mão resvalou em um quadro que retratava dois homens fazendo sexo em uma posição impossível, deixando-o torto.

— NÃO! NÃO TOQUE NISSO! É sujo! — O homem a puxou por uma das mãos com toda a força que possuía, jogando-a na direção do meio da sala.

Gabriela sentia cada batida do seu coração. Quem deixou aquele louco entrar na exposição? Por que ninguém fazia nada para ajudá-la? O olhar do homem de terno agora agregava fúria. Ela tinha que decidir entre enfrentá-lo ou correr. Nesse momento, ouviu uma movimentação atrás de si. Virou-se. Um grupo de seguranças tinha entrado na sala. Sentiu o alívio. Estavam se reunindo para conter o louco. Foi em direção a eles, controlando-se para não correr, quando viu o que carregavam nas mãos. Panos pretos.

Os seguranças dividiram-se e começaram a distribuir os panos para todas as outras pessoas. Alguns simplesmente pegavam as vendas as colocavam, caladas e dóceis, como vacas caminhando pelo brete para o abate. Outras tentaram argumentar, mas suas vozes logo se tornavam um balbucio inaudível, frente à ameaça de o segurança usar a sua força colocar a venda à força. Poucos gritaram e apenas um tentou reagir. Logo logo foi contido.

Gabriela assistia àquilo horrorizada. Não entendia o que estava acontecendo. Os vendados continuaram a andar pela galeria, trôpegos. A mão do homem de terno desceu no seu ombro. Exalava cheiro de um perfume que conhecia. Polo, reconheceu novamente sem querer. Desta vez, não fugiu. O homem a vendou com um gesto rápido, reduzindo o seu mundo à escuridão.

Nada daquilo fazia sentido. Há poucos minutos, tinha entrado na galeria para ver uma exposição de arte. Você foi jogada em uma história do Ray Bradbury com cenário do Hieronymus Bosch. Ouviu a voz de Ary, um antigo professor de filosofia, rindo em sua cabeça. Embora estivesse perto, o homem de terno continuava gritando.

— É a Lei! A nova Lei! É para o seu bem. É para a sua liberdade. Para a liberdade de todos.

Ele soltou o braço que havia agarrado. Gabriela ficou imóvel no meio do saguão da galeria, cercada pela arte, mas sem poder olhá-la.

Sem saber para onde ir.

Sem saber como reagir.

Era a nova Lei.

Era, em verdade, a antiga Lei.

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