Barba Ensopada de Sangue

Barba Ensopada de Sangue

Imagine que você não tem a capacidade de reconhecer rostos. Você os vê normalmente. Interage como qualquer outra pessoa. A única diferença é que, momentos depois, seu cérebro não guarda a imagem e a correlação entre aquele rosto e a pessoa com quem estava conversando. Não há nenhuma face, em sua memória, associada a ninguém. Você vive com um vazio no lugar da expressão da sua mãe, da sua mulher, do seu filho e de todas as demais pessoas.

O nome dessa doença é prosopagnosia e o personagem principal de Barba Ensopada de Sangue convive com ela desde que nasceu. A ideia de ter alguém com esta limitação como protagonista, por si só, é ótima e concede um universo de possibilidades a serem exploradas pelo escritor. E Daniel Galera não se revelou um autor preguiçoso.

O livro abre, darei um pequeno spoiler, com uma conversa marcante entre o protagonista e seu pai. Este o convida para o seu Sítio e anuncia que se matará no dia seguinte. Pede para o filho sacrificar a cadela que o acompanha há anos, pois não tem coragem. Um primor de abertura, onde são definidas diversas características do protagonista, do seu passado e contexto, e onde, de forma natural, é abordada a morte do avô, na cidade de Garopaba.

Um cachorro fiel é um animal aleijado. É um pacto que não pode ser desfeito por nós.

No capítulo seguinte, já estamos em Garopaba, e mergulhamos no cotidiano do protagonista, um professor de educação física que participava de triatlos e que se refugia em um autoexílio no litoral catarinense, depois de uma (grande) decepção amorosa. A prosopagnosia passa a ser apenas mais das características do protagonista, com a qual nos acostumamos, da mesma maneira que ele.

Seria bobagem fingir que não a viu até o momento, está bem na sua frente, na mesa ao lado, e seria igualmente ridículo tentar fazê-la compreender, nas circunstâncias, que somente a voz ou alguma interação mais complexa poderiam ter revelado a identidade dela.

A história nos envolve lentamente, num ritmo firme, seguro e prazeroso. O protagonista busca respostas para a morte do avô, envolta em mistérios. Não há explicações claras para os seus motivos. Mas eles estão todos lá. O autor não menospreza o seu público com demonstrações didáticas e tampouco tenta confundi-lo com subterfúgios. A jornada em busca do avô é uma jornada em busca de si mesmo.

As noites frias torturam o verão com uma morte lenta.

Narrado em terceira pessoa e com texto seco, mas claro e fluído, Galera praticamente mistura a narração com os diálogos. Em mãos menos habilidosas o texto poderia ficar obscuro. Não é o caso.

Barba Ensopada de Sangue é um livro necessário para quem deseja ter algum conhecimento sobre o panorama da produção literária brasileira contemporânea. Depois dele, dificilmente você deixará de ler outros livros do autor, como Mãos de Cavalo e Meia Noite e Vinte.

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