A distopia brasileira.

A distopia brasileira.

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Antônio sacolejava no ritmo do ônibus. Sua mão direita estava para cima, segurando frouxamente uma barra de ferro que teoricamente o impediria de cair. A aglomeração ao redor dele, contudo, encarregava-se dessa tarefa. Não havia possibilidade de se mexer ou de, sequer, abaixar o braço, que começava a ficar dormente. O outro braço estava para baixo e igualmente não conseguiria subir.

O fone começou a tocar “Touch”, do Little Mix, que a sua filha havia pedido para colocar na playlist. Queria mudar, mas nenhuma das mãos tinha liberdade para alcançar o telefone dentro da mochila. Conformou-se com a música e pensou em como organizar o resto do seu dia.

Marta estava estaria fora o dia inteiro, na clínica. Aquele era o dia em que ficava com os filhos antes da escola, mas tivera que sair às 7h, depois de receber a mensagem mandando que se apresentasse ao trabalho às 9h. Disse um palavrão ao se recordar do celular tocando às 5h da manhã. A senhora ao lado virou o pescoço, o mais que podia, comprimida como ele, para mostrar a sua cara de indignação. Ele apenas levantou as sobrancelhas, em um pedido de desculpa.

Sabia e eles também que deviam definir com dias de antecedência a sua escala. Nunca faziam aquilo. Mesmo sendo um eletricista experiente, não reclamava. Sentiu a raiva e a impotência retornarem. Alguns colegas reclamaram e não estavam mais na empresa. “É assim que a banda toca”, como dizia o chefe da manutenção.

O ônibus parou para a entrada de novos passageiros. Pensou que aquilo seria impossível, mas mesmo assim alguns conseguiram entrar. Seu braço, agora, formigava. Foi liberado às 10h. O conserto, no final, não se mostrou complexo. Conformado com o desperdício de seu tempo, voltou para casa com a esperança de ainda fazer um almoço rápido e conseguir levar o filho para a escola.

Desde de que se tornara “intermitente”, a sua vida virou uma bagunça. Não conseguia programar mais nada. Chegava a sentir ciúme da mulher e dos seus plantões de 12 horas, que sempre viravam 13 ou 14. Teve que desistir de tudo, inclusive do futebol da segunda à noite, depois de faltar a três jogos seguidos e deixar os amigos na mão.

Sua vida, agora, resumia-se àquilo. Trabalhar ou ficar à espera de ser chamado para o trabalho. No meio, comia, dormia e ficava naquele ônibus. Por um instante, desejou imensamente ser livre. Mandar o chefe à merda. Mas isso era o mesmo que mandar os filhos à merda. Alguém gritou — “Não” — em sua cabeça. A voz era a do seu pai: “Responsabilidade filho”. Aquela voz sempre voltava para lhe indicar o que era certo.

A música finalmente terminou. E começou “Power”, do mesmo conjunto. Praguejou novamente. Sequer conseguia abaixar o volume.

Alguns dias, não, vários dias da semana, sequer se encontrava com a mulher. Comunicavam-se por mensagens. Não se sentia mais como parte de um casal. Eram sócios na tentativa de administrar uma casa onde moravam duas crianças, tão perdidas quanto eles.

Alguns passageiros finalmente desceram e ele pode baixar o braço. Tentou fazer alguma estimativa de quanto tempo passou no ônibus naquela semana. Não conseguiu. Não havia mais rotina. Os dias se misturavam. Certamente, pensou, mais tempo do que com os filhos. Olhou para fora e viu que estava a três paradas da sua. Começou a esgueirar-se pela multidão na direção da porta. Contorcendo-se, sacou o telefone da mochila e deu stop na música. O alívio foi imediato. Um instante depois, entrou uma nova mensagem: “a máquina parou de novo, volta rápido”.

Pensou em atirar o celular longe, mas ali, na aglomeração, sequer havia essa possibilidade. Não era um homem sensível. Tinha até um certo preconceito contra homens assim. Foi com surpresa, portanto, que sentiu os olhos se encherem de lágrimas.

E foi assim, com os olhos marejados, que desceu na próxima parada, atravessou a rua e ficou esperando o ônibus para retornar ao serviço.

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