Um homem de palavra.

Um homem de palavra.

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Esta semana terminei o décimo terceiro episódio da sétima temporada da série Sons of Anarchy. Noventa e dois episódios depois, vi-me triste na madrugada com a despedida do personagem principal, Jax Teller. O problema é que Jax era o brutal e assassino líder de uma gangue de motoqueiros que, além de comercializar armas e drogas, mantinha vínculos em outras atividades ilegais , como a prostituição.

A última temporada, em especial, foi um banho de sangue, com centenas de mortos. Qual a justificativa para eu me importar com o destino de um personagem desses?
Para começar, o óbvio: as pessoas não são boas ou más, simplesmente. Isso é um maniqueísmo que cai bem somente em contos de fada ou novelas mal escritas. Um roteirista minimamente competente consegue trabalhar com as nossas dualidade e pluralidades. Jax, por exemplo, era pai, marido, carismático, inteligente, determinado e matava gente pior (olha um pequeno maniqueísmo aí) do que ele. O mais marcante, tinha uma relação de irmandade com seus companheiros, era honrado e mantinha a palavra empenhada.

Honra e palavra empenhada. Todo personagem masculino, se quer qualquer simpatia do público, tem que manter os dois, que muitas vezes se confundem. Ele pode matar, roubar, esfolar, e tudo isso pode ser perdoado. Agora, se for mentiroso …

Na vida real, honra é algo que se demora a ter e se perde num instante. Certa vez, um grupo de amigos meus jogava uma partida de canastra, num sítio, quando a casa foi praticamente invadida por uma mulher. Aos prantos, dizia estar sendo agredida pelo marido, que a perseguia. Era a época das trevas pré-celular e um dos meus amigos foi até um sítio vizinho, atrás de um policial que morava ali. O policial atendeu, disse estar de folga e não ser problema seu. Meu amigo, inconformado com aquela omissão, pensou no pior xingamento que poderia dizer àquele homem.

— Honra se perde somente um vez. — Virou-se e foi embora, antes de apanhar, deixando o policial esbravejando atrás de si.
Pode-se reconquistar a honra, mas é um processo demorado . E as pessoas sempre ficarão com uma pulga atrás da orelha. Você terá que provar pelo resto da vida que é confiável.

Sobre a palavra empenhada, a melhor história que conheço é uma do meu pai. Ele estava jogando bola com amigos na Avenida Independência , ao lado do Colégio Rosário em Porto Alegre, imagino que no final dos anos quarenta. Para quem não conhece, a Avenida hoje tem quatro pistas e um fluxo enorme de veículos. Atravessá-la é um desafio para qualquer pedestre. Na época, podia-se tranquilamente marcar as goleiras e jogar com a bola que conseguissem, couro, meia ou assemelhado, praticamente sem perigo ou interrupção.

O problema é que as goleiras ficavam coladas à parede do Colégio, que tinha uma sequência de janelões. Lá pelas tantas, o padre encarregado da disciplina apareceu e mandou que parecem de jogar ali, antes que alguma vidraça fosse quebrada. Obviamente, o pedido foi ignorado e, tão logo o padre virou às costas, o jogo foi reiniciado.

Dois gols depois, voltou o padre, um alemão enorme, e apreendeu a bola. Meu pai ameaçou, então, que se a bola não fosse devolvida, quebraria todas as vidraças do colégio. O padre ignorou-o. Meu pai esperou ele sumir dentro do colégio, pegou uma pedra e foi quebrando, um a um, todos os vidros que alcançava nos janelões.

A quantidade de vidros quebrados variava um pouco nas versões que ouvi do meu pai e da minha avó. Acho razoável presumir que ele tenha passado por umas cinco ou seis janelas antes de ser contido pelo padre e por empregados do colégio e levado, como um louco enfurecido, para a sala do diretor.

Meu avô, um distinto advogado, foi chamado para resgatar o filho. Ouviu impassível e com o rosto fechado toda a história. Imagino que o tom do diretor não tenha contribuído para angariar a sua simpatia. Ao final dela, virou-se para o filho e perguntou.

— Tu prometeste que quebraria todos os vidros?

— Sim, pai. Prometi.

Meu avô aquiesceu gravemente, virou-se para o diretor, e sentenciou.

— Um homem tem que manter a sua palavra. Quanto foi o prejuízo?
Obviamente, meu pai mal viu a luz do sol por quase um mês, preso aos estudos e sem jogar bola. Ali, contudo, frente a estranhos, era mais importante para o meu avô a lição de que se deve manter a palavra, mesmo sabendo que sofreria as consequências.

Meu pai foi o vilão que praticou o crime, manteve a sua palavra, foi corajoso e aceitou as consequências. Não tem como deixar de torcer para ele. Ou para o Jax.

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