O que me faz e o que não me faz ser gaúcho

O que me faz e o que não me faz ser gaúcho

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Uma das minhas lembranças mais remotas é estar sentado aos pés do meu pai, na frente da nossa casa. A chaleira perto de mim (“Cuidado, está quente!”). A cuia de inox indo e voltando, até chegar às minhas mãos, em algum momento, depois que água já estivesse morna. Eu bebia com força, sob o sorriso dele, até roncar, como me ensinou. Aquilo era um passaporte de entrada para o mundo dos adultos. Quase como um ritual de iniciação. Até porque, pensava, deveria existir algo de importante naquela poção amarga e tomada com tanta cerimônia.

Hoje, minhas filhas mateiam comigo. E percebo no olhar delas aquele mesmo misto de curiosidade e importância quando lhes alcanço a cuia. Quando a devolvem, depois do ronco, há aquele sorriso de pertencimento. A sensação de estarmos compartilhando algo. Nelas, vejo ecos de mim e do meu pai. Consigo mesmo me recordar do avô que não conheci e antecipar meus futuros netos e netas.

Ser gaúcho, para mim, é isso: ter laços que nos costuram a nossos antepassados e acolherão em um abraço cultural quem nos sucederá. É um sentimento quente. Um lugar da nossa mente, onde estão um fogão à lenha, com uma banqueta e um pelego na frente, cercado por um mundo que está esfriando.

A tradição é um reforço da nossa identidade. Ela mora na dimensão da memória afetiva. Ver alguém de bombacha nos dá a ideia de pertencimento. Andar em uma terra estranha e ver uma camisa do Inter (ou até mesmo do Grêmio!), traz a lembrança de casa. Estabelece um vínculo com aquela pessoa. Há um compartilhamento mudo.

Mas, como tudo que é bom na vida, pode ser utilizado para fazer coisas ruins.

As ideias inclusivas trazem consigo a ideia de exclusão. Se nós somos gaúchos, os outros não são. E aí começa o problema.

Basta uma simples olhada na história. Há, claro, o exemplo das ditaduras (não, não vou falar na Alemanha, embora…). Sejam elas de direita ou de esquerda, sempre apelam para o nacionalismo a fim de ter apoio popular. Mas não é preciso apelar para esses exemplos extremos. Vamos olhar para o nosso lado.

Na democracia, empregar de forma competente essa ideia de “nós versus eles” é a forma mais efetiva de angariar apoiadores e canalizá-los para alguma finalidade. É assim que se estabelecem diferenças artificiais, elege-se um inimigo e direcionam-se multidões.

Pessoas que buscam algum propósito ou que sentem injustiçadas e subestimadas são vítimas fáceis para esse discurso fácil.

Ser gaúcho não é ser melhor do que ninguém. É uma identidade cultural. É algo que me alegra, mas do qual não posso ter “orgulho”. Orgulho se tem de algo que se conquista. Nascer no Rio Grande do Sul foi um acidente genético, como ter propensão ao câncer de próstata, como dizia o comediante George Carlin.

Não deixem que corrompam esse nosso sentimento.

A não ser que seja um catarina… 😉

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