Catalães

Catalães

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Sabedoria é algo caro no mercado de commodities cósmico. O Deus ____ (preenchas com o nome que desejares), quando estava com o lápis na boca e olhos para cima criando o mundo, pensou “a velhice dará sabedoria, em compensação…”. E daí começou a tirar todo o resto.

Uma das coisas que tirou é a vitalidade. E sem ela, fica cada vez mais difícil a adaptação às diferenças de fuso horário. Vinte anos atrás, quando eu avançava ou retroagia cinco horas, tinha no máximo um par de olheiras e algum sono. Hoje, são dois ou três dias arrastando um mamute acorrentado pelas ruas.

Isso pode piorar, se você é um planejador voraz como eu, que transforma as suas viagens em uma série sádica e sequencial de compromissos. Eu imagino que a excitação de antes da viagem faça o meu corpo produzir algum hormônio alucinógeno, que me impede de ver o óbvio, como não marcar caminhadas de vinte quilômetros depois de um treino de corrida pela manhã.

Mas o que isso tudo tem a ver com os catalães?

Parte dessa minha preparação é estudar o que puder do povo e do local para onde estou indo. Começo ali no paleolítico e venho vindo. E a minha última viagem (da qual ainda estou me recuperando fisicamente), foi para Barcelona.

O gaúcho é um povo orgulhoso do seu passado e que se abraça na sua cultura. “O mundo é essa porção de terra envolta do Rio Grande do Sul”, como dizem por aqui. Pois agora, multipliquem isso por quatro. Depois elevem na segunda potência. Coloquem um idioma castelhano, com muitas palavras em francês e falado com sotaque italiano. Pronto! Temos um catalão.

A Catalunha era povoada pelos nativos da península Ibérica. Foram colonizados pelos fenícios. Depois, vieram os romanos e as invasões dos visigodos, dos francos, dos mouros, dos francos. E dos francos de novo e de novo (eles estavam sempre por lá). No meio disso, formou-se a Espanha, por meio de um casamento.

Todos sabemos que o casamento é a forma mais instável de se tentar tornar perpétuo um relacionamento. Não é à toa que Madrid e Barcelona tenham suas diferenças até hoje. São como aqueles casais antigos, cheios de rancor e ressentimento, que na verdade não queriam estar juntos, mas não sabem mais como se separar.

Mas de onde vem esse sentimento de ufania catalã, que pulsa no peito dos catalães? Uma análise superficial da história deixa o intérprete apressado sem explicação. A Catalunha perdeu quase todas as guerras onde se meteu. Afora um período com Jaime I, o Conquistador, no século XIII, apanhou sucessivamente. Depois da unificação com Castela, por exemplo, tentou por duas vezes se separar e foi duplamente derrotada. Na segunda vez, em 1714, as tropas francesas (olha eles aí de novo), que representavam Castela, sitiaram e destroçaram a cidade. Agora, no século XX, resistiu aos fascistas de Franco até o fim, e foi novamente colocada de joelhos, destruída com sucessivos bombardeios e aprisionada com grilhões e mordaça.

Ser gaúcho facilita a resposta. Nosso maior orgulho é uma guerra que perdemos, a Revolução Farroupilha. Afora ela, no máximo conseguimos alguns empates. Ficamos aqui, resistindo aos castelhanos, que vinham tomar a terra ou saquear as estâncias. Nossas fronteiras iam e vinham, conforme o sabor do momento.

E essa é a chave. Resistir. Sobreviver juntos e lutando, por um longo tempo. Dar as mãos na necessidade e estar do mesmo lado. Ser derrotado, levantar-se e seguir para a próxima batalha. Isso forja o caráter de um povo. Os catalães são assim. Sempre se ergueram e persistiram. No correr dos séculos, tornaram-se cada vez mais fortes, unidos e admiráveis.

A vida, como disse Rocky Balboa, o pensador-pugilista cinematográfico, não é sobre o quanto você pode bater. É sobre o quanto você pode apanhar e ainda assim se erguer.

Resiliência. Esse é o orgulho que molda o catalão.

Um salve a eles.

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