Conto de Natal

Conto de Natal

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O gato conseguiu retirar uma das patas de dentro da toalha velha. Ainda o segurando enrolado contra o peito, tentou envolvê-la, mas a pata foi mais rápida e arranhou o seu queixo. Sentiu um calor onde as garras entraram, afiadas, na carne. Depois, veio a ardência. Apertou o gato, que miou furioso, e conseguiu conter as pequenas navalhas.

Voltou a correr. Ao seu redor, casebres enfileiravam-se sem ordem aparente. Corria pelo meio deles, em um caminho sinuoso, de pés descalços. Uma ou duas vezes resvalou e quase caiu. Há dias não chovia. Mas o estreito caminho por entre as choças permanecia sempre molhado. Um pouco, pelo bloqueio da luz do sol. Um muito, pela água suja que deveria estar em um esgoto que não existia.

Correu até o final da favela, onde as casas acabavam como se uma mão gigante tivesse feito um risco no chão.
À sua frente, estava a avenida.

— xxx —

O carro da frente mudou de pista, fazendo com que reduzisse a sua velocidade.
— Filho-da-puta! – Deu um tapa na direção. E mais um. E vários depois disso, em rápida sucessão. Não conseguiu bloquear o acesso de raiva. Era como o jato de água em um cano furado na parede por acaso.

Não conseguiu fugir do plantão na véspera do natal. Nenhum colega aceitou trocar o horário. Ana, sua mulher, não gostava nada daquilo. Ela ligou no final do turno dizendo que a filha estava chamando por ele. Naquele exato instante, como se estivesse esperando a ligação, um dos dutos de escoamento indicou problema de pressão. Foram mais duas horas para descobrir o problema.

Olhou o celular. Eram quase nove horas da noite. Ligou para dizer que todos podiam cear, mas sabia que esperariam por ele. Todos. Sua irmã e as quatro filhas. A família da sua mulher. A insuportável tia dela. O avô caquético. As crianças, ansiosas para abrirem os presentes. Estavam lá. Esperando. Com rostos simpáticos, sob os quais estava a acusação muda de que ele havia atrapalhado a ceia de natal. Podia ouvir a tia Irene, falando baixo, como que perguntando para si mesma, mas na verdade fazendo uma acusação: “Quem trabalha na noite de natal?”

As ruas não estavam cheias, mas havia uma urgência no ar. Ele estava entre os retardatários. No trânsito daquela noite, cada um queria chegar logo para onde estavam indo. Não queriam ficar sozinhos. Não queriam desapontar alguém. Desejavam fazer parte da obrigatória felicidade de natal.

Fez sinal de luz e o carro permaneceu na sua frente. Agarrou a direção com força e acelerou, metendo-se entre o carro e o acostamento. O motorista tomou um susto, indo para o lado. Ele ergueu o dedo médio alto, embora soubesse que, como era noite, provavelmente a ofensa não seria vista. Não se importava. O gesto, por si só, bastava para o seu desabafo. Enquanto olhava pelo retrovisor, viu um borrão com o canto do olho, à esquerda. Seus olhos fixaram-se no menino, que carregava alguma coisa. Ele iria atropelá-lo.

Em um reflexo, puxou a direção para a direita e pisou no freio. Se tivesse algum carro naquela pista, teria batido. Passou pelo menino temendo ouvir algum som de impacto. O único som, contudo, foi o ranger dos seus pneus. Tentou voltar para a sua pista, girando a direção no sentido contrário, mas a traseira do carro ganhou vida. Ele começou um giro. Soltou o freio. Retomou o controle, mas estava praticamente atravessado em duas pistas. Atrás dele, ouviu o guincho do frear de outros carros. Foi em direção ao acostamento e torceu para que nenhum carro atingisse o seu. Um deles passou colado à sua direita. Entrou no acostamento quicando nos buracos. Andou mais alguns metros, até conseguir frear totalmente.

Ele tremia inteiro. Parecia que suas mãos haviam se fundido ao volante, onde encostou a testa suada. Deu um suspiro. Permaneceu assim, tentando se acalmar. Alguém bateu em seu vidro, sobressaltando-o. Era o motorista do carro para o qual havia mostrado o dedo. Veio perguntar se ele estava bem e se precisava de ajuda. Sua voz quase não saiu, tanto pela tensão quanto pela vergonha. O homem desejou-lhe um feliz Natal e voltou para o seu carro.

Ele permaneceu no acostamento, com o carro desligado.

— xxx —

As muitas pistas eram largas. Ele ameaçou ir uma, duas, três vezes. Não conseguia calcular o momento certo. Os carros surgiam em uma sucessão inesgotável e passavam em velocidades diferentes. Começou a ficar angustiado. Estava atrasado. Viu uma pequena brecha. Lançou-se para a frente. No meio da primeira pista, o gato fez um esforço para fugir e quase escapou do seu aperto. Ele deu um passo para o lado e se desequilibrou. Perdeu a concentração e o tempo da travessia. Olhou assustado para os carros que vinham. Deu um passo vacilante, depois retomou a corrida, acreditando ter reencontrado o ponto para se esgueirar. Um carro mudou de pista subitamente. A sua brecha desapareceu. Seria atropelado. O carro arremeteu para o outro lado. Ouviu uma sucessão de guinchos de pneu. O próprio gato parecia compreender a gravidade do momento e ficou inerte. Um segundo carro passou raspando. Outros dois quase bateram. Ele correu novamente, até chegar ao outro lado. Estava vivo.

Inclinou-se para frente, arfando. Recuperou o fôlego. O gato permanecia quieto. Entrou no mato que margeava a estrada e saiu em outra confusão de casebres, igual àquela de onde tinha vindo. E foi subindo. Escalando vielas cada vez mais íngremes, por caminhos cada vez mais estreitos, até chegar em casa.

A pequena construção improvisada onde morava tinha um pedaço de compensado que fantasiavam ser uma porta. Empurrou-o para lado. Ao redor da mesa redonda, escorada na parece para compensar a perna quebrada, seus três irmãos estavam debruçados sobre os pratos de diferentes tipos e cores. Neles, lentilha rala e arroz. Era a ceia de natal. Um cardápio festivo. Havia comida para todos. Mais. Naquela noite, poderiam repetir. Os dois meninos mais velhos olharam surpresos. Eram parceiros e adversários na sobrevivência diária. A irmã menor sorriu, mas foi a voz da mãe que ouviu.

— Onde tu estava Roberto? Sempre andando por aí! Meu Deus! Nem no natal eu consigo uma folga! — Ela segurava a lata de cerveja. Devia ser uma das primeiras, pois ainda conseguia falar de forma clara. Ana, a mais nova, desceu do banco e se aproximou.

— O que que é isso, Roberto? — Apontou para o peito dele. Ele estendeu, desajeitadamente, o gato em direção à irmã.

— É para ti. O Papai Noel mandou eu te dar.

A irmã abriu mais o sorriso e tentou pegar o presente. Ao sentir o alívio da pressão, o gato deu um espasmo rápido que o fez escapar das mãos de Roberto. Caiu no chão, ainda enrolado pela toalha. Ele se abaixou para pegá-lo, mas era tarde demais. O bichano saiu correndo, deixando a toalha na porta. Ele e a irmã ficaram olhando para fora. Roberto sentiu a dor da frustração. Tanto trabalho para pegá-lo e trazer ali. A única coisa que poderia dar a irmã. Os mais velhos começaram a gargalhar.

— Deixa esse bicho ir embora! Era só o que faltava, trazer mais uma boca para eu dar comida. Deus me livre Roberto. É só desgosto que tu me dá. — E levou a lata à boca, dando vários goles seguidos.

A irmã encheu os olhos de água. Ao ver a tristeza dela, os olhos de Roberto também ficaram molhados.

Nada saia em vida como ele queria.

Nada.

— xxx —

Ligou o carro e voltou à estrada. A raiva havia se dissipado. A urgência para chegar em casa continuava. Mas era diferente. Havia se transformado em angústia.

Quando estacionou o carro na rua, ouviu as risadas vindas da garagem. Haviam montado nela a grande e improvisada mesa da ceia. Entrou pela porta lateral. Em princípio, ninguém o percebeu, até a filha gritar o seu nome. Ela veio correndo se atirou no seu colo. Ele andou com ela até a mulher. Deu em Ana um longo beijo, pegando-a de surpresa. O resto da família começou a gritar e assobiar. Sem falar nada, colocou a filha no chão e foi em direção à irmã.

Envolveu-a em um abraço apertado. Ela retribuiu. De alguma forma, ele sabia que ela sabia. Confortaram-se um ao outro, em um carinho imóvel e mudo.

Um agradecimento pelo o que tinham.

Dessa vez, ele trazia para ela apenas o seu amor.

E não um gato.

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