Orgulho, preconceito, gárgulas e Paulo Coelho

Orgulho, preconceito, gárgulas e Paulo Coelho

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“No seu caso, a crítica ainda é um problema? Ela ainda o incomoda como autor?” (Juremir Machado da Silva).
“Os críticos sempre me perguntam isso, mas é totalmente irrelevante. […] eu digo que o sucesso é poder dormir em paz sabendo que você está fazendo o que gosta.” (Paulo Coelho)

Era o começo dos anos 1990 quando O Alquimista estourou entre os mais vendidos. Paulo Coelho virou um personagem literário. Eu e meus amigos imediatamente condenamos aquela badalação entorno de um livro “menor”. Montados como gárgulas na nossa arrogante catedral intelectual (nada mais orgulhoso do que um adolescente com boa impressão da sua inteligência), mirávamos de cima e despejávamos desprezo em qualquer leitor ou, pior, admirador do livro. Ele virou o exemplo perfeito do “não li e não gostei”.

Apesar do meu desprezo, Paulo Coelho não se mostrou efêmero. Sua carreira continuou com leveza ascendente. Emplacou um sucesso depois do outro. Colocou O Alquimista na lista de mais vendidos do USA Today por 442 semanas seguidas – não há erro no número, são oito anos e cinco meses, até agosto de 2017, quando este texto foi escrito. O Presidente Bill Clinton o convidou para participar do Fórum Mundial de Economia, em Davos. Ganhou o título de Cavaleiro das Artes e das Letras na França e, depois, o de Cavaleiro da Legião de Honra, por indicação de Jacques Chirac. O presidente da Feira do Livro de Frankfurt o recebe pessoalmente, chamando-o de o escritor mais conhecido do mundo.

Nada disso me convenceu. Fábula, mago, sucesso? Um brasileiro? Que bobagem era aquela? Uma farsa. Uma união impossível. A revoada de gárgulas continuou e eu não me importei. Já o havia condenado ao esquecimento e à obscuridade. O problema é que outros milhões de leitores, que faziam desaparecer sucessivas edições dos seus livros em livrarias ao redor do globo, transformando-o em um dos escritores mais vendidos do mundo, não se importavam com a minha opinião.

O tempo insiste em querer nos dar um pouco de sabedoria. E se negamos esse presente, pelo menos ele nos mata no cansaço.

Talvez o início da minha mudança de postura tenha se dado quando percebi a postura do próprio autor. Em todos esses anos, ele nunca deu manifestações públicas raivosas contra a sua rejeição pela elite cultural. Imagino que deva ter querido ferver em tinta de impressão dezenas de críticos ferinos. Se não isso, deve ter ao menos desejado responder à altura as ofensas disfarçadas de críticas. Manteve a fleuma, contudo. Ao contrário, em várias entrevistas afirmou que não guardava mágoa ou rebatia críticas.

Fiz um inventário mental do que sabia a respeito dele. Foi um grande parceiro de Raul Seixas. Só por Água Viva (baseada no poema de San Juan de la Cruz), Gita, e Medo da Chuva, pensei, eu já deveria ter lhe dado um merecido crédito inicial. Foi de estudante de colégio jesuíta a hippie. Foi preso pelo DOPS e torturado pelo DOI-Codi. Quando exercia a sisuda função de executivo de uma gravadora, uniu galhofa ao tino comercial e “concebeu” Sidney Magal. Roteirizou o filme que lançou o “garanhão de proveta” e incluiu no pacote até a cigana Sandra Rosa Madalena.

Só esse currículo já o recomendava como uma excelente parceria para uma conversa, com bom vinho, noite a dentro.

Passei a segui-lo nas redes sociais, por curiosidade. Mostrou-se alguém que acompanha o delicado momento do nosso país e que tem uma visão crítica apurada sobre os nossos problemas.

Pouco tempo atrás, boicotou a Feira de Frankfurt, porque autores nacionais de sucesso, como Eduardo Spohr, André Vianco e Raphael Draccon, não foram convidados pelo Ministério da Cultura. Eram escritores de literatura “fantástica”, um gênero menor para as gárgulas.

Então, eu já não fazia mais parte daquela revoada. Havia percebido que a catedral intelectual era apenas uma ilusão. O delírio daqueles que se colocam na posição de defensores da erudição, mas, em verdade, só defendem a sua alta posição na fachada do prédio gótico das suas pretensões.

Os livros de Paulo Coelho são Proust? Não. Se quero ler Proust, leio Proust. Ou Murakami. Ou Cormac McCarthy. Todos são escritores com temáticas e estilos próprios, assim como Paulo. E os leitores reconhecem isso nele. O texto ágil. A história que flui. Uma mensagem adjacente ao texto.

Por que presto essa homenagem? Primeiro, por que ela é devida. Na essência, contudo, o texto fala mais de mim do que do homenageado. Muito do que escrevo é sobre a loucura do nosso mundo, onde o preconceito está se revelando um (des)valor central. Não poupo desqualificativos para os preconceituosos. Não poderia ser autoindulgente ao reconhecer em mim o que abomino neles.

Eu não sei se Paulo Coelho é um mago. O que sei é que milhões de pessoas o amam como contador de histórias.

Isso, por si só, faz dele um grande escritor.

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