Ordem e Caos. Ou a arte zen de arrumar uma sala de espera já arrumada.

Ordem e Caos. Ou a arte zen de arrumar uma sala de espera já arrumada.

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“O palhaço não sou eu, mas sim esta sociedade monstruosamente cínica e inconscientemente ingênua que interpreta um papel de séria para disfarçar a sua loucura.”
(Salvador Dali)

Eu não me recordo se era inverno. Provavelmente sim, pois fazia muito frio. Havia subido a serra de Santa Catarina para o casamento de um dos meus melhores amigos. Era o primeiro do nosso grupo de cinco que enfrentaria o padre para jurar amor eterno, fidelidade… Bem, vocês conhecessem a fala. Aquilo era um rito de passagem para nós todos. A cerimônia que marcaria a nossa transformação de adolescentes veteranos em adultos iniciantes.

O casamento era “O” evento da cidade e todas as atenções voltavam-se para ele. Meu amigo, até hoje não sei o porquê, isolou-se no quarto de hotel, como uma noiva supersticiosa. Não o vimos durante todo o dia, até a hora da cerimônia. Cheguei a suspeitar, tamanho o suspense criado, que seria a noiva a esperá-lo no altar. Seria o primeiro noivo a desfilar sob a marcha nupcial. Ele é dado a esses arroubos criativos. Por fim, o casamento observou a fórmula tradicional, afora a quase briga de socos com o padre, mas isso é outra história.

Durante a tarde, nossas mulheres enfiaram-se no melhor salão de beleza da cidade. O único, para ser preciso. Com isso, eu e os restantes três integrantes da nossa confraria de amigos ficamos livres para fazer o que quiséssemos. Vagamos pelas ruas vazias. Comemos. Bebemos. Rimos. Comemos de novo. Bebemos de novo, até cairmos no marasmo. Não havia mais nada para fazer naquele local. Quando nos atingiu o desespero, fizemos como os homens geralmente fazem. Fomos atrás das nossas mulheres.

O salão de beleza tinha dois andares. No primeiro, uma grande recepção, com alguns conjuntos de sofá, grandes vasos, quadros, um balcão de atendimento e outros adereços. Uma decoração, via-se, planejada. O andar estava vazio. Sequer a atendente estava ali. No andar de cima, ouvíamos sons que faziam as trombetas do apocalipse parecerem flautas doces. Passos rápidos, passos lentos e arrastar de cadeiras misturavam-se a gritos e imprecações, tudo junto do barulho somado de vários secadores, entre outros ruídos indiscerníveis. Todas as mulheres da cidade, todas as forasteiras e todas as cabelereiras, maquiadoras e congêneres da região misturavam-se ali, naquela corrida conjunta pela beleza.

Um de nós subiu a escada cautelosamente, como um espião adentrando o território inimigo, e de soslaio viu o que ocorria. Não o perceberam, absortas que estavam. Voltou chocado. Não conseguia descrever o que tinha visto. Ficamos ali, sentados e quietos por alguns instantes naquela sala vazia. Foi então que a centelha da loucura passou por um de nós. Ele se levantou, foi até uma das mesas, pegou um vaso e o trocou por outro, que estava noutra mesa. Bastou um olhar entre todos para saber o que faríamos.

Fechamos a porta. Um permaneceu controlando a escada. Os demais atiraram-se a uma frenética redecoração de tudo o que havia naquela sala. Conjuntos de sofás e mesas. Tapetes. Quadros mudaram de parede. Até mesmo três vasos enormes, que mal conseguíamos carregar em conjunto, foram realocados. Nada ficou no lugar onde originalmente estava.

Enquanto carregava os móveis de um lado para outro, pensei no absurdo que seria se alguém, a dona do salão, por exemplo, nos flagrasse. O que diríamos? Não havia qualquer explicação para aquilo. Sequer eu sabia o motivo. Seria uma vergonha inacreditável. No final, cansados e suados, ainda paramos e fizemos pequenos ajustes. Um objeto de decoração para cá. Um quadro torto foi ajustado para lá. Dando-nos por satisfeitos, fomos embora. Ninguém nos viu entrar. Ninguém nos viu sair.

No correr daquela noite, pegava-me rindo alto só de imaginar as pessoas que trabalhavam no salão descendo a escada e se deparando com aquela cena. A mesma sala. Toda rearranjada. Totalmente modificada. Como, quem, quando e, fundamentalmente, por quê? Certamente, alguma daquelas mulheres duvidou da própria sanidade. Mas era do outro jeito mesmo? Carregarão esse mistério por toda a vida.

Por que lhes conto isso?
Porque passamos a vida inteira tentando dar ordem ao caos. Arrumamos a cama. Limpamos a casa. Organizamos nossa mesa de trabalho. Alinhamos os ícones na tela do computador. Lavamos a louça. Secamos a louça. Guardamos a louça. Todos os dias.

De certa forma, nossa vida pode ser vista sob esta ótica. Uma luta para não deixar o caos tomar conta de tudo. Uma guerra na qual podemos ganhar todas as batalhas, ser imaculadamente limpos, organizados, metódicos, chatos, mas que, mesmo assim, estamos destinados a perder.

A ordem é uma abstração criada por nossa mente para tentar entender o caos que nos circunda. Um filtro no qual colocamos o universo complexo de um lado e pegamos migalhas ordenadas para a nossa pequena capacidade de compreensão do outro.

No meio dessa luta pela ordem, são raros os momentos de paz, quando abraçamos o caos e nos divertimos com ele, sem causar mal aos outros ou a nós mesmos.
Agora levante e vá arrumar alguma coisa.

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