Como vencer o discurso de ódio

Como vencer o discurso de ódio

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Não sei se você acompanhou a polêmica da semana passada que envolve a filósofa Marcia Tiburi. Ela estava em um estúdio de rádio, comentando o julgamento do ex-presidente Lula, quando ingressou na sala Kim Kataguiri, o ex-estudante e a principal voz do Movimento Brasil Livre, o MBL.

Surpresa, pois não havia sido avisada que o ativista participaria do programa, ela se levantou, disse que tinha vergonha de estar naquele programa, que não falava com pessoas indecentes e perigosas e que tinha medo de permanecer ali. Pegou as suas coisas e foi embora em meio à transmissão.

A cena, que foi filmada e está disponível na Internet, suscitou milhares de elogios, críticas e comentários diversos.

Afinal, a atitude de Marcia foi certa ou errada? E por quê?

Em uma democracia, a regra é a discussão. E democracia é um sistema trabalhoso. Existem associações, partidos, agremiações, conselhos, comissões, entidades, ONGs, parlamentos, assembleias, imprensa, executivo, judiciário… Nela, é quase impossível conseguir um consenso. Sempre tem alguém ou alguns contrários a certas ideias. Para qualquer decisão avançar, é necessário vencer as resistências, a burocracia, o desinteresse e formar uma maioria. Em bom português, democracias são um saco.

Consensos em democracias são filhos do acaso ou da exceção. Consegue-se em situações extremas, como guerras e copas do mundo, por exemplo. Alguém invadiu o seu país ou você vai jogar a final do campeonato. Dificilmente alguém será contra aquela “corrente para frente”. Se estiver contra, provavelmente é um traidor e será atirado na fogueira para que haja consenso desse lado da fronteira.

Já as ditaduras são mais ágeis. As decisões são tomadas imediatamente, sem os empecilhos da democracia. Algum burocrata de quinta categoria amanhece com dor de barriga, depois de comer como um boi na noite anterior, acha que a culpa é do cozinheiro e manda matá-lo. E já aproveita e manda enforcar toda a família dele, para que dali não saiam outros cozinheiros tão ruins. As ditaduras, ao contrário das democracias, não são chatas. Há um clima de tensão constante no ar. Você sempre pode ser a próxima vítima.

Bom, como vivemos em uma democracia, ou algo que se diz assim, devemos discutir. E somente discutimos com quem temos divergências. Senão, a conversa vira uma mera ação entre amigos. A discussão tem como pressuposto a contraposição de ideias e a tentativa de achar convergências e consensos. Até mesmo conseguir convencer o outro de que o seu argumento é superior, ou vice-versa, muito embora esse tipo de atitude aberta à mudança seja cada vez mais raro em uma época de polarização, ódio e ideias rasas.

Com essa breve análise, podemos dizer que a atitude de Marcia, em princípio, foi condenável.

Ocorre que, mesmo na democracia, existem discussões que não devem ser estabelecidas de forma pública. A simples propagação destas ideias é nociva. Discuti-las, por si só, é um mal.

Aqui, você pode achar que o texto pende para um maniqueísmo. Um “isso é bom e isso é ruim” arbitrário e contraditório com a essência da democracia, que referi acima.

Não. São pouquíssimos os temas que não devem ser debatidos e são poucas as pessoas a quem não deve ser dado palco para divulgá-los.

Não se deve discutir publicamente, por exemplo, ideias que propaguem a superioridade de um sexo sobre outro, de uma cor sobre outra, de uma religião sobre outra ou de uma nacionalidade sobre outra etc. Ideias preconceituosas e discriminatórias que visam estabelecer a supremacia e domínio de uma parcela da população. A discriminação de minorias pode ocorrer, mas somente para beneficiá-las; nunca para oprimi-las.

Há ideias, vejam, que ofendem o próprio conceito de democracia participativa. Não há democracia com opressão de qualquer tipo, incluindo a econômica.

Divulgar estas ideias é um desserviço à sociedade. Dar palco aos seus porta-vozes pode parecer democrático, mas é permitir que se espalhe a ferrugem do ódio. Um ódio que pode corroer, ao final, o sólido ferro sobre o qual pensávamos estar assentado o nosso país.

Deixemos que o ódio corroa apenas quem o gera. Lentamente. Sem poder se espalhar.

Vamos condená-las a viver isoladas consigo mesmas.

E você, o que acha da atitude de Márcia?

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