Amigos dão trabalho

Amigos dão trabalho

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Eu costumava reservar as tardes de sextas-feira para realizar trabalhos externos. Era um advogado recém-formado e percorria os fóruns para olhar os meus processos. Não havia, ainda, as facilidades de consultas on-line ou processos eletrônicos. Tínhamos que ir no balcão de cada vara, com uma lista embaixo do braço, e colocar a mão em cada um deles.

Naquela tarde, contudo, eu não precisava fazer a “ronda”. O final do ano se aproximava e fazia um calor horrível. Estava em casa, refugiado no ar condicionado e vendo alguma coisa na televisão, enquanto me enganava e empurrava para o final de tarde o estudo da matéria do concurso.

Foi nesse meio tempo que meu amigo chegou. Não avisou antes, como podem fazer os amigos. Entrou e disse, já rindo ao antecipar minha reação, que vinha me buscar para ajudar na mudança dele. Eu também ri e respondi que ele estava louco. Estabeleceu-se aquele diálogo surreal entre amigos de muito tempo. Ele tentando me convencer de que eram poucas caixas e de que precisava de outro carro (o meu) para levar tudo. Eu mandando-o para aquele lugar que você já imagina.

Uma hora depois, estava subindo e descendo três lances de escadas, carregando caixas de papelão de todos os tamanhos.

Amigos.

Mas moeda tem duas faces.

Eu estava saindo de casa, com uma mala de roupas e sem destino, logo depois de ter me separado. Tudo aconteceu muito rápido e eu não tinha qualquer plano. Então, liguei para um outro amigo. Uma ligação breve. Acredito que não tenha durado mais de um minuto. Contei o que tinha acontecido e comuniquei que iria morar no apartamento dele por um tempo indeterminado, até decidir para onde iria. Ele disse “claro que sim”.

Amigos.

Ter amigos dá trabalho. É quase como outro trabalho qualquer, mas o seu pagamento é em satisfação, risadas, companheirismo e conforto. Você se reconhece em seus amigos, por mais diferentes que eles sejam de você. Amigos são essenciais. Exatamente por serem tão importantes, tem um preço alto.

Um amigo exige dedicação, compreensão, amor e tempo. Como se vê, ele exige exatamente o que está minguando no mundo.

Há uma frase, daquelas atribuídas a vários autores pela Internet, provavelmente de autoria de Paulo Sant’Ana, que diz: “a gente não faz amigos, reconhece-os”. Eu acredito nela. Nos últimos anos, deixei diversos novos amigos escoarem entre os meus dedos, exatamente por saber que não teria tempo e condições de lhes oferecer o mínimo de atenção necessários. Por não encontrar qualquer brecha de tempo na planilha mental dividida entre família, trabalho e lazer. Por saber que cada amigo implica um grande investimento e que não teria capital humano suficiente para bancá-lo.

Tenho consciência de que sequer cuido direito dos meus atuais amigos. Quantos outros eu deixei que virassem memória? Boas memórias. Ainda sim, somente memórias. Isso, por não ter insistido, ligado, comparecido, ajudado, rido junto. Por não ter estado presente. Por ter privilegiado outras pessoas, tarefas ou coisas.

Reclamamos que a vida nos afasta, mas, afora se você for militar, caixeiro-viajante ou fizer parte de uma tribo nômade, isso não é bem verdade. Quase todas as nossas aproximações e afastamentos decorrem das nossas escolhas.

Então, marque aquele jantar e convide-os.

A escolha é sua.

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