Crítica sobre Sono de Haruki Murakami

Crítica sobre Sono de Haruki Murakami

Sono está situado naquela zona cinza entre o conto longo e a noveleta. Muito embora abarque um período de mais de dezessete dias da vida da protagonista, tem menos de cem páginas, descontadas as suas ilustrações. É uma leitura rápida e uma excelente “porta de entrada” para quem nunca teve contato com a prosa limpa de Murakami.

Não sabemos o nome da protagonista, embora ela mesmo nos narre o que ocorreu a partir do momento no qual perdeu a capacidade de dormir. Certa noite, acorda de um pesadelo sentindo uma presença no quarto. Um velho magro de agasalho preto, segurando algo em sua mão.

Era um regador. O velho ao pé da cama segurava um regador. Um regador antigo de cerâmica. Um tempo depois, ele o ergueu e começou a jogar água nos meus pés. Mas eles não sentiam a água. Eu a via caindo sobre os meus pés. Escutava seu barulho. Mas os pés não sentiam nada. (página 35)

Assustada, desce para a sala, acha uma garrafa de Rémy Martin e serve-se de um copo – inaugurando um hábito que não possuía – e começa a ler Anna Karenina , de Liev Tolstói. A partir daquela noite, não volta a dormir.

Sua vida adquire toda uma nova dimensão. Esposa e mãe, passa a viver uma vida de segredos assim que o marido e o filho adormecem. No início, alarma-se com a ausência de sono, mas depois de alguns dias acostuma-se à sua nova condição. Enquanto permanece em vigília, seu marido dorme de forma profunda e imperturbável. O contraste acaba levando-a a questionar as diferenças entre os dois e o sentido da sua própria vida, que se resume a cuidar da casa e do filho, sem outras ocupações intelectuais ou profissionais. Muito embora esteja com apenas trinta anos, passa a sofrer de uma crise de meia-idade, encarando o vazio da sua rotina.

Eu escrevia um diário, mas se eu esquecesse de escrevê-lo dois ou três dias já não sabia mais diferenciar um dia o outro. Se trocasse o ontem pelo anteontem, não fazia diferença alguma. (página 28)

Sono é uma história de indefinições e sutilezas. Não sabemos o motivo pelo qual deixou de dormir. Ou porque isso não a afeta fisicamente. Pequenos gestos, corriqueiros na aparência, têm grandes significados. Há um ar de ameaça subentendido no texto, mas que não conseguimos, efetivamente, definir. A certa altura, o próprio leitor parece estar sonhando, ou melhor, tendo um pesadelo com aquela história. Um pesadelo do qual não consegue acordar ou parar ler.

É interessante como a escrita objetiva de Murakami contrasta com a simbologia e o misticismo da sua obra. Não há explicações únicas ou fáceis e, mesmo o final, que obviamente não revelarei, apresenta-se como um desafio para o leitor.

Não posso deixar de fazer uma menção à primorosa edição da Alfaguara, que tem tradução direta do japonês por Lica Hadshimoto. A capa dura, o título e ilustração em relevo, marcados por tinta prata metalizada e reflexiva, as belas e psicodélicas ilustrações de Kat Menschik, a gramatura do papel e a fonte utilizados transformam o livro em um objeto de arte. Exatamente por edições com esse cuidado e beleza, creio que livro impresso nunca será extinto pelo livro digital, mesmo considerando as praticidades do último.

Murakami é mais do que uma indicação. É uma leitura necessária para quem pretende ter um panorama ampla da literatura contemporânea.

Divirtam-se.

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